quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Podem ser discutidos, mas não desprezados...


Jorge Forbes

Não adianta você querer dizer que nada tem a ver com isso, que é só uma data no calendário, que o Ano-novo não muda nada, que todo dia é igual ao outro, que você está acima ou indiferente a essas convenções sócio-comerciais, que o Ano-novo é patrocinado pelas agências de turismo, como o Natal seria invenção do clube dos lojistas. A sociedade vive de pactos e convenções, que podem ser discutidos, mas não desprezados. Do contrário, seria como dar um tiro no próprio pé. Não se caminha sem acordos de convivência. E alguns, como o Ano-novo, dada sua extensão universal, têm uma força simbólica real, que não permite indiferença. Até aquele mal-humorado que prefere ir sozinho à última sessão de cinema do dia 31 de dezembro, e que antes da meia-noite já está dormindo, não escapa ao Ano- novo. Não querer ver a entrada do ano é uma reação negativa, mas é uma reação.
E todos os anos se renovam as promessas, mesmo que sejam as mesmas das últimas décadas – sempre anunciadas, nunca cumpridas – sem nenhuma vergonha do pecado. O Ano-novo lava a alma do passado e estabelece um “daqui para a frente”.

E a psicanálise, tem algo a dizer sobre as boas intenções do Ano-novo? Sim, tem. Ao menos em dois aspectos. “Você quer o que você deseja?“, seria o primeiro; o inexorável da surpresa, o segundo. Muitas das promessas ficam só nas promessas, porque é bastante comum não se querer o que se deseja. Esse aspecto até auxilia os analistas no diagnóstico. Obsessivos seriam os que só querem o que não desejam, pois assim não arriscam perder o que lhes é mais precioso, mantendo-o escondido a sete chaves; e histéricas aquelas que, eternamente insatisfeitas com o que obtêm, desejam sempre outra coisa. Querer o que se deseja implica o risco da aposta – toda decisão é arriscada – e a coragem de expor sua preferência, mesmo sabendo que toda carta de amor tende ao ridículo, como lembra Fernando Pessoa.

Então, no Ano-novo, uma promessa analítica, se existisse, seria suportar querer o que se deseja e não temer a surpresa do próprio Ano-novo. O momento mesmo do réveillon é o melhor exemplo do imprevisível: embora todo mundo saiba quando ele vai nascer, embora (tal qual obstetras do futuro) acompanhemos a contagem regressiva do nascimento em voz alta, não conseguimos evitar a curiosidade entusiasmada de ver sua cara em meio à sinfonia dos fogos de artifício e das bolhas de champanhe.
E todo Ano-novo é multifacetado, tem uma cara para cada um, é o que o difere do Ano-velho, com suas conhecidas rugas e rusgas.
Tanto melhor, amigo, se o Ano-novo o encontrar feliz.

Título no blog, retirado do texto do Forbes, por sueliaduan

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O homem que tudo explicava

divã- Freud



Jorge Forbes
Esquisito animal esse ser humano que cisma em estar em perene e inquietante mutação. Por que não ser como uma vaca, ou um rouxinol - pensava John Keats -, ou um camelo? Afinal, vacas, rouxinóis e camelos não duvidam do que são, do que querem, do que fazem. Nada mais parecido com uma vaca que uma outra. Homens, não. Homens e mulheres têm que ser contados um a um, e isso por quê? Pela singularidade do desejo, como diria o poeta, pois para o homem todas as formas de amor valem a pena desde que se responsabilizem pela forma escolhida; é o problema que está na base da angústia.

Para evitá-la, a angústia, uma maneira é se valer de um programa que garanta uma conexão com o mundo, com esse mundo do qual Carlos Drummond de Andrade, vendo-se excluído, afirmou que mesmo se mudasse de nome para Raimundo, para ficar mais parecido e perto, nem assim seria uma solução, uma vez que o coração, o desejo, aponta para algo sempre mais vasto.

Freud descobriu um programa fantástico, um software diríamos mais tecnologicamente, e o chamou de complexo de Édipo. Muito melhor que os "softs" atuais, que rapidamente ficam obsoletos, o complexo de Édipo funcionou muito bem por praticamente cem anos. A tal ponto foi o seu sucesso que passamos a acreditar que o laço social era naturalmente edípico. Ainda hoje neurocientistas tentam provar as localizações cerebrais do Édipo e das instâncias psíquicas freudianas. Um deles, outro dia, estava feliz por pensar que o id estaria perto do sistema límbico e que um remédio seria possível de ser sintetizado para tratá-lo quimicamente; provavelmente com o nome comercial de ID-ota.

Dizia que, por muito tempo, entendemos o comportamento humano pela ótica edípica: o menino vai mal na escola, é disputa com o pai; a menina está com espinhas, é vergonha da sexualidade; a mulher está frígida, é trauma do primeiro relacionamento; e também: o presidente se esborrachou? Arruinado pelo êxito.

Sim, Freud explicou como fazíamos para administrar o encontro com o novo, com a surpresa, com o "mais forte que eu". E se Édipo funcionou tão bem foi porque ele teve a genialidade de captar que o laço social na modernidade, onde nasceu a psicanálise, era vertical. Na família, a ordem do pai; na empresa, o modelo do chefe; na sociedade, o amor à pátria. Esse mundo está deixando de existir; a globalização privilegia as ligações horizontais, a multiplicidade de ideais no lugar de alguns poucos e consagrados. A psicanálise de hoje vai além do Édipo, precisa de uma nova topologia para tratar do habitante do século XXI, como anunciou Lacan.

Isso quer dizer ir além de Freud? Não, o que quer dizer é a obrigação de radicalizarmos a sua descoberta da falta de padrão da satisfação humana. Não existe mais roupa pronta para vestir nessa nova era, a questão não é saber mais sobre si mesmo para garantir uma ação sem risco, como pensávamos, mas, ao avesso, fazer análise hoje é poder precipitar o tempo da decisão, não se afogando na angústia paralisante. Toda decisão é precipitada, uma vez que sempre será incompleta, daí, inventiva.

A pergunta freudiana não envelheceu: "O que você quer?" Ser freudiano é se fazer continuador em um problema, não em uma resposta, ensinou Gaston Bachelard.

O homem de hoje, a que chamo de "desbussolado", por ter perdido o norte do bem e do mal, fortemente estabelecidos na era anterior, vê-se frente a uma encruzilhada: recuar ou avançar? Recuar para as velhas soluções baseadas na tríplice lógica: se algo está errado é porque houve um erro de educação, de remédio ou de fé. Ou avançar para inventar uma nova sociedade na qual a orientação paterna seja substituída pelo cálculo coletivo; que a adversidade vire oportunidade; o estático se transforme em interativo; a avaliação ceda para a responsabilização; a verdade seja menos importante que a certeza; que genéricos abram espaço para talentos; enfim, que a razão asséptica se transforme em razão sensível.

Vejo aí um vasto programa para a psicanálise no século XXI: a sociedade espera uma nova estrutura, um novo software que nos permita aproveitar a liberdade da quebra de padrões e afaste a crescente onda reacionária que nos assombra.

Jorge Forbes, psicanalista e médico psiquiatra, introduziu o pensamento de Jacques Lacan no Brasil, teve participação na criação da Escola Brasileira de Psicanálise e preside o Instituto de Psicanálise Lacaniana. É autor, entre outros livros, de "Você Quer o que Deseja?"