sábado, 23 de abril de 2011

O Sonho Acabou, Viva o Sonho!

                                        Jorge Forbes                                           

Não se fazem mais rebeldes como antigamente. Acabaram os James Deans, os Jimi Hendrix, os Jacarés; as passeatas, as pichações dos muros, as palavras de ordem, as cartilhas do desalienado, os códigos secretos de nome e lugar. Não se sobe mais a Rua Augusta a 120 por hora, mesmo porque seria lento. E por que esse mundo não existe mais é que deixa tanta saudade; uma saudade orgulhosa de quem participou da famosa geração 68.

Ontem, era possível ser rebelde. Vivia-se uma época padronizada do ‘deve ser’. Para tudo havia um manual, uma bula que definia o bom procedimento. Como ter filho, como educar, como casar – com quem, com quantos anos -, como escolher uma profissão – desde que fosse médico, advogado ou engenheiro – como se aposentar, como morrer. Na família imperava o pai; no trabalho, o chefe; na sociedade, a pátria. A essa forma de organização do laço social, em torno a símbolos maiores e aglutinadores, dá-se o nome de organização vertical. A identidade se estruturava verticalmente. Nesse contexto, o caminho da rebeldia estava traçado: contestar os padrões estabelecidos. Daí surgia a sensação de liberdade com o seu riso tenso, sim, tenso, porque se sabia que o que referendava essa liberdade era a morte e ela muitas vezes ocorria. Ameaçava-se com a morte, de variados tipos, dos simbólicos ao real, a quem não obedecesse aos padrões; então, por dedução, morrer era o atestado maior por não ter obedecido aos temidos padrões. A morte era o troféu do rebelde, onde, finalmente, transformava-se em herói. Seu caixão era levado em procissão pela turma. Seus feitos transformados em memória gloriosa e, paradoxalmente, em novos padrões para falsos rebeldes, amantes da contestação pasteurizada, sem risco, que passavam a se vestir como, andar como, dirigir como, falar como o seu herói.

Hoje não é possível ser rebelde. Rebelde a quê? Não há mais um consenso coletivo contra o que lutar, não há grandes grupos fechados em uma bandeira comum, mas pequenas, porosas e flexíveis tribos. Não se pede coerência, acabou o “O que é isso companheiro?”, o tempo é da mistura, do ‘mundo mix’. Se antes a responsabilidade era coletiva frente a uma escolha comum, agora ela é subjetiva, cada um é responsável por suas diferentes escolhas. O lugar da morte também não é mais o mesmo. De ponto final que consagrava uma carreira, ela passa a ponto de partida. Logo, está afastada a morte real, só valem seus representantes alusivos. Os mais conhecidos são os esportes radicais, do tipo: na terra, escalar, no ar, paraglider, no mar, kitesurf. O sucesso desses esportes vem da necessidade não de ir além do limite, como fazia o rebelde, mas, ao contrário, de estabelecer um limite, de saber onde está a morte e de como lidar com ela. Esse verdadeiro exercício cria pontos de ancoragem, raízes, por isso, radicais. É enganoso pensar que a mocidade de hoje é inferior à de ontem. Que hoje, por não haver grandes mobilizações nas ruas, ou inflamados discursos em palanques improvisados, estariam todos perigosamente desinteressados. Esse julgamento vem de velhos conceitos. O mais interessante é descobrirmos as novas formas de organização do amor, ou seja, no acadêmico, do laço social, do “estar ligado”.

Os laços sociais passaram de verticais a horizontais. Porque não há mais padrões universais, falamos em sociedade de rede. E também, pela mesma razão, vivemos um renascimento cultural. A cultura se renova quando há necessidade de se reinventar o mundo; é o nosso caso. Que tal em vez de acharmos que os jovens estão perdidos por não se juntarem contra os governos corruptos - para dar um exemplo do que antes mobilizaria muitos - vermos que eles estão apontando para outros lugares e formas de governo; não nas capitais inventadas para isso, nem nas mãos de fantoches decadentes e obscenos. Não se muda mais a vida com grandes exemplos, ou grandes prisões, mas com detalhes; motivo de falarmos em epidemia. Para o bem e para o mal, as epidemias são transformadoras, em sua capacidade de tocar a cada um de um jeito. Se os jovens não dialogam mais, eles monologam; eles inventaram a capacidade de articular os monólogos - “monólogos articulados” - a causar arrepios nos iluministas. Um claro exemplo é a música eletrônica, não tem palavras, não tem um só sentido, mas faz muita gente estar ligada. O sonho acabou, viva o novo sonho!

Artigo publicado na Revista TRIP 163
fevereiro 2008

domingo, 17 de abril de 2011

A vida é honra

por  Jorge Forbes

Simon Howden / Freesite.net

Na mesma semana, dois fatos contrários. Enquanto festejávamos a moça que, visitando o túmulo do seu pai, avisa a polícia de um assassinato cometido pela própria polícia, somos confrontados ao moço que loucamente invade uma escola e mata mais de dez alunos, ferindo gravemente outros tantos, para ao final se suicidar.
A alegria que nos deu o gesto da moça desapareceu na enxurrada de sofrimento provocada pela morte das crianças na idade do sonho. Fica uma pergunta no ar de todas as mídias: Por que?
Por que ele fez isso, o que o motivou, com qual intenção, era psicótico, fiel de religiões bárbaras, possuído pelo demo, desorientado sexual, revoltado pela adoção, por que, por que? E toca-se a perscrutar seu passado, seus escritos, conversar com familiares, vizinhos e conhecidos, refazer seus percursos, tudo na tentativa de encontrar supostos elos lógicos que justifiquem o assassinato de tantas crianças. Pululam profetas do passado lutando levianamente pela audiência televisiva.
Cá entre nós - paremos um pouquinho - será que alguém seriamente pensa que existiria uma lógica que explicaria essa atrocidade? Uma determinação genética ou cultural assassina? Não me parece crível. O que me é mais convincente é que a sociedade, de tão assustada frente a seu próprio horror, tenta inventar respostas que justifiquem o injustificável, que a assegure que aquela pessoa é diferente de todas outras, enfim, que não tem nada a ver comigo, nem com você.
A presidente Dilma, no momento do ocorrido, declarou que o Brasil não estava acostumado a esse tipo de crime. É certo, não estava acostumado, mas, como se viu, não estava imune. Associamos essa modalidade criminosa mais à América do Norte e a alguns países da Europa, que nos antecederam em ocorrências. Vivemos uma era na qual, se não tomarmos cuidado, descambaremos para a banalização radical da vida. Longos amores já são desfeitos em curtos e-mails: - “Fui”. Pessoas que nos desagradam não merecem resposta, basta “deletar”, palavra nova que associa uma pessoa a uma letra: um toque e pronto, ela desaparece. Sim, sei que o abismo entre os exemplos é enorme, mas, insisto: que nome se dá a “matar” na gíria criminosa se não, “apagar”?
Para complicar ainda mais nosso estarrecimento, como não perceber a ânsia desses assassinos em quererem fazer de sua morte um acontecimento? Esse é um padrão que se repete em todos os casos: se tive uma vida deletável, terei uma morte memorável.
A solução não reside, por tudo isso, no aumento de segurança armada dos estabelecimentos públicos. Seria uma atitude que corresponde a uma visão muito reduzida do que nos ocorre. Pode acalmar, de imediato, angústias desesperadas, mas nem resvalará no problema que nos abate.
Voltemos à moça do cemitério e a seu gesto. Ela contrariou todas as ordens de salvaguarda pessoal que nos doutrinam nas delegacias e na mídia. – “Jamais responda a um atacante, não olhe para ele, abaixe a cabeça, entregue tudo para não entregar a vida, não fuja, fale docemente, chame de senhor, não defenda alguém que está sendo atacado, etc, etc.” A moça foi muito desobediente. Naquele cemitério vazio e afastado, ela, sozinha, homenageava seu pai morto. De repente um assassinato – e por policiais – na sua frente. Fugir, se amedrontar, se esconder em um túmulo vazio, como lhe ensinaram? Ao contrário, altivamente, cheia de orgulho humano, pois se trata muito mais de honra que de coragem, ela vai a um telefone público, liga para a polícia militar e descreve calmamente e em detalhes o que está presenciando. E ainda mais, ao ver a aproximação dos homens fardados é ela que toma a iniciativa de abordá-los e de inquiri-los sobre o que acabaram de fazer. Ela deve tê-los assustado, não por uma força maior que a deles, mas por agir em outro registro, aquele que lhe dizia que sim, é claro que ela podia fugir, mas viver não é sobreviver, salvar a pele não é salvar a vida, uma vida vai bem além da pele.
Imagine, caro leitor, uma sociedade composta de pessoas do tipo dessa moça, pessoas que não respondem às armas pelas armas, mas sim respondem às armas pelo constrangimento, que aposta que o pior assassino pode ser tocado em um ponto do constrangimento humano. Mesmo que difícil, não é utópico como o exemplo da moça o demonstra, e o primeiro passo é recuperarmos a noção que viver é muito mais que sobreviver e que não se vive, não se respira em uma sociedade de deletáveis.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

"Há um quê na presença física que é insubstituível"

Preciso de você

Cada pessoa precisa de alguém que o ajude a chamar o seu êxtimo, de meu íntimo 
Jorge Forbes

A jornalista me pergunta impressionada a razão de novas pesquisas constatarem que, contrariamente ao que muitos esperavam, o povo da internet cada vez mais associa seus passeios na rede com a necessidade de estar junto. Esse fato relativiza as críticas morais que bradam ameaçadores avisos anunciando que o mundo estaria perdido, pois a www -  World Wide Web – seria uma teia perigosíssima que estaria aprisionando nossa pobre juventude, em um isolacionismo narcisista e emburrecedor.
Essa notícia chega ao mesmo tempo em que o Papa se precipita em condenar um aplicativo para smart-phones, através do qual o fiel antenado se confessaria on line, sem a necessidade de se ajoelhar na madeira dura de um confessionário escurecido por muitos pecados ali penitenciados. Ao menos dessa vez, ufa!, o Papa mostrou que “tá ligado”, pois a web não substitui a presença física.

Na mesma vertente, podemos falar da repetitiva pergunta se é possível fazer análise por skype, ou serviço semelhante, sem ter que se preocupar com o terrível trânsito das grandes cidades, bem como se garantir em ter seu analista à mão, ou melhor, na tela, entre um mergulho e outro, em uma ilha paradisíaca, do outro lado do mundo.
Não dá. Há um quê na presença física que é insubstituível. E se dizemos “um quê” é exatamente pelo fato de não podermos precisar o que é isso da presença física que não sabemos traduzir em nenhum idioma e por nenhum meio, razão pela qual não a podemos substituir, pois, como celebrou Michel Foucault: “a palavra é a morte da coisa”; se falamos de algo, substituímos o algo pela palavra e não precisamos mais dele.
Em um mundo que quebrou os paradigmas cartesianos de espaço e tempo, jogando-nos no furacão do ilimitado sem fronteiras, não há nada a estranhar na necessidade da presença física do outro, do corpo do outro, do seu enigma, do cheiro, cor, som, movimento, textura, olhar, que não sabemos traduzir em bytes.

Esse enigma do outro é o remédio para a angústia tão atual, por nos termos visto transformar em habitantes de lugar nenhum.
Seis mil moças e moços geeks se acotovelaram por uma semana, em São Paulo, em uma festa chamada Campus Party. Seis mil!, em um pavilhão de exposições. É tão importante estarem juntos, que um nipo-brasileiro, morando ao lado do local da festa, trocou o conforto de seu quarto, por uma tendinha de campanha, verdadeiro elogio do desconforto.
A presença do outro nos remete ao mais essencial de nós mesmos. Se fôssemos honestos, parodiando Vinícius, jamais diríamos expressões do gênero: “no meu íntimo”. E isso porque o que nos escapa é exatamente o nosso íntimo. Diríamos, melhor, com Lacan: “no meu êxtimo”, sim, porque o meu íntimo me é tão estranho – quem já passou por uma análise sabe bem o que estou descrevendo – que melhor chamá-lo de êxtimo, clara alusão ao estranho e ao externo de si mesmo, que habita cada um.

Podemos nos livrar de muita coisa na vida, mas não da gente mesmo, em especial desse ponto íntimo desconhecido, promotor de nossas paixões, essa força estranha vivida na sensação do “mais forte que eu”. A presença física do amigo, do amado, do familiar, do próximo, nos reconecta com esse ponto fundamental, âncora de nossas existências, ponto transcendente de nossa imanência, se quisermos nos valer do discurso da Academia.
Nesse mundo de aparente tudo pode, e de em tudo estou, não por isso devemos nos assustar que ao lado do aumento dos acessos aos meios virtuais, vejamos crescer em paralelo os lugares de encontro físico, sejam eles campus parties, igrejas, consultórios, bares, cruzeiros. Os motivos são variados e o que neles se realiza, também, mas a necessidade é uma só: estar junto. Na era da pós-modernidade, onde o laço social das identificações é predominantemente horizontal, nos damos conta que o principal afeto, o mais fundamental afeto, é o da amizade.

Cada pessoa precisa de alguém que o ajude a chamar o seu êxtimo, de meu íntimo.

(artigo publicado na revista Psique nº 63, março 2011)