sábado, 4 de fevereiro de 2012

Inconsciente e responsabilidade: Psicanálise do século XXI


por Jorge Forbes

“[...] O inconsciente do qual vamos tratar é aquele que leva o ser falante a responsabilizar-se pela invenção de seu estilo singular de usufruir de seu corpo e de sua vida. No discurso da psicanálise difundida nos meios de comunicação, responsabilidade e inconsciente não são termos que aparecem conjugados, chegando a ser considerados excludentes. Assim, a responsabilidade estaria associada à consciência plena e onde houvesse inconsciência não poderia haver responsabilidade. Diante de um ato que cometeu – voluntária ou involuntariamente – e sobre o qual estranha a própria participação, é comum a pessoa dizer: ‘Só se foi o meu inconsciente’. No século xxi, o psicanalista que acredita no inconsciente irresponsável não trata o sintoma e não cura. É urgente considerar a responsabilidade pelo que é inconsciente, pois já não podemos mais contar com as ficções – tais como a do mito paterno – que, até o século passado, nos permitiam escapar, dizendo: ‘Foi por causa de papai’. Também a clínica psicanalítica, por essas mesmas razões, atravessa um novo momento. […]” - Trecho da Introdução

Sobre o autor:
Jorge Forbes é psicanalista e médico psiquiatra, em São Paulo. Mestre e Doutor em Psicanálise pela Universidade de Paris VIII e Universidade Federal do Rio de Janeiro, respectivamente. É também Doutor em Ciências pela Faculdade de Medicina (Neurologia), da Universidade de São Paulo (USP). É um dos principais introdutores do pensamento de Jacques Lacan no Brasil, de quem frequentou os seminários em Paris, de 1976 a 1981.


sábado, 21 de janeiro de 2012

Protocolos do afeto

por Luiz Felipe Pondé

Famílias podem ser máquinas de moer gente. Uma das marcas de nossa fragilidade é depender monstruosamente de laços tão determinantes e ao mesmo tempo tão acidentais. O acaso de um orgasmo nos une. Em meio a jantares e almoços intermináveis, o horror escorre invisível por entre os corpos à mesa. Talvez muitos pais não amem seus filhos e vice-versa. Quem sabe, parte do trabalho da civilização seja esconder esses demônios da dúvida sob o manto de protocolos cotidianos de afeto. Até o darwinismo, uma teoria ácida para muitos, estaria disposta a abençoar esses protocolos com a sacralidade da necessidade da seleção natural. Mesmo ateus, que costumeiramente se acham mais inteligentes e corajosos, tombam diante de tamanho gosto de enxofre. Pergunto-me se grande parte do sofrimento psíquico e moral de muita gente não advém justamente da demanda desses protocolos de afeto. Da obrigação de amar aqueles que vivem com você quando a experiência desse mesmo convívio nos remete a desconfiança, indiferença, abusos, mentiras e mesmo ódio. A horrorosa verdade seria que existem pessoas que não merecem amor? Pelo menos não de você. Mas você é obrigado a amar irmãos, filhos, pais, avós, e similares. E, se não os amar, você adoece. Um sentimento vago de desencontro consigo pode ocorrer se um dia você se perguntar, afinal, por que deve amar alguém que por acaso calhou de ter o mesmo sangue que você? Alguém que é fruto de um ato sexual entre o mesmo homem e a mesma mulher que o geraram em outro ato sexual.

Quem sabe a força do "mesmo sangue" seja uma dessas coisas que a experiência moderna esmagou, assim como a crença, para muita gente já vazia, no sobrenatural, na providência divina ou no amor romântico. Sim, o niilismo teria aí uma de suas últimas fronteiras? É comum remeter esse vazio da perda dos vínculos de afeto ao mundo contemporâneo da mercadoria. Apesar de ser verdade que os laços humanos se desfazem sob o peso do mundo do capital, parece-me uma ingenuidade supor que o mal da irrealidade dos afetos seja "culpa" do capital. É fato que a modernidade destrói tudo em nome da liberdade do dinheiro, mas é fato também que não criou a espécie em sua miséria essencial. A melancolia tem sido a verdade do mundo muito antes da invenção do dólar. Por que devo amar alguém apenas porque essa pessoa me carregou em sua barriga por nove meses? Ou porque penetrou, num momento de prazer sexual, a mulher que iria me carregar em sua barriga por nove meses? Por alguma razão, questões como essas parecem mais sagradas do que Deus, o bem e o mal, ou a vida após a morte. Como se elas devessem ser objetos de maior fé do que as religiosas. Ou porque elas garantem a convivência miúda e tão necessária para a estabilização da sociedade. Só monstros colocariam em dúvida tal sacralidade.  Mas quantas horas nós passamos vasculhando nossas almas em busca de afetos que, muitas vezes, podem ser o contrário do que deveríamos sentir?

Ou não achamos nada além da indiferença? Às vezes, a pergunta pelo amor pode ser apenas um protocolo contra o desespero.Estamos preparados para pôr em dúvida a normalidade sexual no caso de mulheres que gostam de fazer sexo com cachorros, mas não estamos preparados para suspeitar que grande parte de nosso amor familiar não passe de protocolo social. Rapidamente, suspeitaríamos que estamos diante de pessoas doentes e sem vínculos afetivos. Por que, afinal, mulheres homossexuais correm em busca de "misturar" óvulos de uma com a barriga da outra, como se, assim, mimetizassem o coito reprodutivo heterossexual? Será que é amor por uma criança que ainda nem existe ou apenas um desejo secreto de ser "normal"? Ter filhos é prova desse amor ou apenas um impulso cego que se despedaça a medida que os anos passam?Um dos nossos maiores inimigos somos nós mesmos, mais jovens, quando tomamos decisões que somos obrigados a manter no futuro. Com o tempo, algo que nos parecia óbvio se dissolve na violência banal de um dia após o outro. Como que diante de um espelho de bruxa

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

"...sustentar no mundo"

Freud

Jorge Forbes

-A psicanálise é uma eterna reflexão – a cada momento você tem que saber como contornar o impossível. 

 -O melhor instrumento para mobilizar o preconceito de uma pessoa é a análise.

- Entrar em análise é sair de uma moral dos costumes e se instalar na ética do desejo

-O que faz durar a possibilidade de uma pessoa pensar ser feliz? Provavelmente a sua capacidade de manter viva a responsabilidade por sua singularidade e a invenção de soluções que consiga sustentar no mundo.


 -A felicidade só se alcança no acaso, na surpresa do encontro.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Podem ser discutidos, mas não desprezados...


Jorge Forbes

Não adianta você querer dizer que nada tem a ver com isso, que é só uma data no calendário, que o Ano-novo não muda nada, que todo dia é igual ao outro, que você está acima ou indiferente a essas convenções sócio-comerciais, que o Ano-novo é patrocinado pelas agências de turismo, como o Natal seria invenção do clube dos lojistas. A sociedade vive de pactos e convenções, que podem ser discutidos, mas não desprezados. Do contrário, seria como dar um tiro no próprio pé. Não se caminha sem acordos de convivência. E alguns, como o Ano-novo, dada sua extensão universal, têm uma força simbólica real, que não permite indiferença. Até aquele mal-humorado que prefere ir sozinho à última sessão de cinema do dia 31 de dezembro, e que antes da meia-noite já está dormindo, não escapa ao Ano- novo. Não querer ver a entrada do ano é uma reação negativa, mas é uma reação.
E todos os anos se renovam as promessas, mesmo que sejam as mesmas das últimas décadas – sempre anunciadas, nunca cumpridas – sem nenhuma vergonha do pecado. O Ano-novo lava a alma do passado e estabelece um “daqui para a frente”.

E a psicanálise, tem algo a dizer sobre as boas intenções do Ano-novo? Sim, tem. Ao menos em dois aspectos. “Você quer o que você deseja?“, seria o primeiro; o inexorável da surpresa, o segundo. Muitas das promessas ficam só nas promessas, porque é bastante comum não se querer o que se deseja. Esse aspecto até auxilia os analistas no diagnóstico. Obsessivos seriam os que só querem o que não desejam, pois assim não arriscam perder o que lhes é mais precioso, mantendo-o escondido a sete chaves; e histéricas aquelas que, eternamente insatisfeitas com o que obtêm, desejam sempre outra coisa. Querer o que se deseja implica o risco da aposta – toda decisão é arriscada – e a coragem de expor sua preferência, mesmo sabendo que toda carta de amor tende ao ridículo, como lembra Fernando Pessoa.

Então, no Ano-novo, uma promessa analítica, se existisse, seria suportar querer o que se deseja e não temer a surpresa do próprio Ano-novo. O momento mesmo do réveillon é o melhor exemplo do imprevisível: embora todo mundo saiba quando ele vai nascer, embora (tal qual obstetras do futuro) acompanhemos a contagem regressiva do nascimento em voz alta, não conseguimos evitar a curiosidade entusiasmada de ver sua cara em meio à sinfonia dos fogos de artifício e das bolhas de champanhe.
E todo Ano-novo é multifacetado, tem uma cara para cada um, é o que o difere do Ano-velho, com suas conhecidas rugas e rusgas.
Tanto melhor, amigo, se o Ano-novo o encontrar feliz.

Título no blog, retirado do texto do Forbes, por sueliaduan

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O homem que tudo explicava

divã- Freud



Jorge Forbes
Esquisito animal esse ser humano que cisma em estar em perene e inquietante mutação. Por que não ser como uma vaca, ou um rouxinol - pensava John Keats -, ou um camelo? Afinal, vacas, rouxinóis e camelos não duvidam do que são, do que querem, do que fazem. Nada mais parecido com uma vaca que uma outra. Homens, não. Homens e mulheres têm que ser contados um a um, e isso por quê? Pela singularidade do desejo, como diria o poeta, pois para o homem todas as formas de amor valem a pena desde que se responsabilizem pela forma escolhida; é o problema que está na base da angústia.

Para evitá-la, a angústia, uma maneira é se valer de um programa que garanta uma conexão com o mundo, com esse mundo do qual Carlos Drummond de Andrade, vendo-se excluído, afirmou que mesmo se mudasse de nome para Raimundo, para ficar mais parecido e perto, nem assim seria uma solução, uma vez que o coração, o desejo, aponta para algo sempre mais vasto.

Freud descobriu um programa fantástico, um software diríamos mais tecnologicamente, e o chamou de complexo de Édipo. Muito melhor que os "softs" atuais, que rapidamente ficam obsoletos, o complexo de Édipo funcionou muito bem por praticamente cem anos. A tal ponto foi o seu sucesso que passamos a acreditar que o laço social era naturalmente edípico. Ainda hoje neurocientistas tentam provar as localizações cerebrais do Édipo e das instâncias psíquicas freudianas. Um deles, outro dia, estava feliz por pensar que o id estaria perto do sistema límbico e que um remédio seria possível de ser sintetizado para tratá-lo quimicamente; provavelmente com o nome comercial de ID-ota.

Dizia que, por muito tempo, entendemos o comportamento humano pela ótica edípica: o menino vai mal na escola, é disputa com o pai; a menina está com espinhas, é vergonha da sexualidade; a mulher está frígida, é trauma do primeiro relacionamento; e também: o presidente se esborrachou? Arruinado pelo êxito.

Sim, Freud explicou como fazíamos para administrar o encontro com o novo, com a surpresa, com o "mais forte que eu". E se Édipo funcionou tão bem foi porque ele teve a genialidade de captar que o laço social na modernidade, onde nasceu a psicanálise, era vertical. Na família, a ordem do pai; na empresa, o modelo do chefe; na sociedade, o amor à pátria. Esse mundo está deixando de existir; a globalização privilegia as ligações horizontais, a multiplicidade de ideais no lugar de alguns poucos e consagrados. A psicanálise de hoje vai além do Édipo, precisa de uma nova topologia para tratar do habitante do século XXI, como anunciou Lacan.

Isso quer dizer ir além de Freud? Não, o que quer dizer é a obrigação de radicalizarmos a sua descoberta da falta de padrão da satisfação humana. Não existe mais roupa pronta para vestir nessa nova era, a questão não é saber mais sobre si mesmo para garantir uma ação sem risco, como pensávamos, mas, ao avesso, fazer análise hoje é poder precipitar o tempo da decisão, não se afogando na angústia paralisante. Toda decisão é precipitada, uma vez que sempre será incompleta, daí, inventiva.

A pergunta freudiana não envelheceu: "O que você quer?" Ser freudiano é se fazer continuador em um problema, não em uma resposta, ensinou Gaston Bachelard.

O homem de hoje, a que chamo de "desbussolado", por ter perdido o norte do bem e do mal, fortemente estabelecidos na era anterior, vê-se frente a uma encruzilhada: recuar ou avançar? Recuar para as velhas soluções baseadas na tríplice lógica: se algo está errado é porque houve um erro de educação, de remédio ou de fé. Ou avançar para inventar uma nova sociedade na qual a orientação paterna seja substituída pelo cálculo coletivo; que a adversidade vire oportunidade; o estático se transforme em interativo; a avaliação ceda para a responsabilização; a verdade seja menos importante que a certeza; que genéricos abram espaço para talentos; enfim, que a razão asséptica se transforme em razão sensível.

Vejo aí um vasto programa para a psicanálise no século XXI: a sociedade espera uma nova estrutura, um novo software que nos permita aproveitar a liberdade da quebra de padrões e afaste a crescente onda reacionária que nos assombra.

Jorge Forbes, psicanalista e médico psiquiatra, introduziu o pensamento de Jacques Lacan no Brasil, teve participação na criação da Escola Brasileira de Psicanálise e preside o Instituto de Psicanálise Lacaniana. É autor, entre outros livros, de "Você Quer o que Deseja?"


sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Corpo- corpo...percepção.


Corpo segundo Merleau-Ponty e Lacan

A ambigüidade do corpo em Merleau-Ponty 
A filosofia de Merleau-Ponty, ao longo de suas diferentes fases, insiste em um duplo aspecto da existência corporal. Imaginemos que minha mão direita toque minha mão esquerda. É evidente que a mão que toca é tocada pela outra, o que implica uma ambigüidade essencial, de modo que não podemos dizer que mão toca e que mão é tocada. Para Merleau-Ponty, na medida em que o pensamento objetivo se recusa em aceitar tal equivocidade (pois deve haver sujeito da ação e um objeto), tal recusa se converte em recalcamento do corpo em geral, reduzido a um mais objeto entre outros – objeto que, no entanto, não aceita esse estatuto. 

De onde vem o recalcamento? E como evitá-lo? O pensamento objetivo é o pensamento comum, pensamento que sempre implica o outro. Talvez nessa referência à alteridade poderíamos compreender o recalcamento do corpo próprio. Merlau-Ponty sempre procurou sublinhar a integralidade do sistema “eu-outro”, nossa inerência a um mundo comum, que funciona em uma quase-harmonia: “é justamente meu corpo que percebe o corpo do outro, encontrando nele um prolongamento milagroso de suas próprias intenções, uma maneira familiar de se relacionar com o mundo”. 

Se tudo isso é verdadeiro, de onde vem então a agressão e a violência que fazem parte do nosso mundo? Por que não posso viver harmoniosamente com o outro? Não seria por causa do recalcamento da alteridade, do aspecto corporal, interior-exterior, sempre ambíguo da percepção? Merleau-Ponty não nega essa possibilidade, mas procura classificar os desacordos entre eu e outro como fenômenos tardios, ocorridos na passagem da infância à vida adulta. Para Merleau-Ponty, no mundo infantil não há violência, e é apenas mais tarde, com o pensamento objetivo e com a formação do cogito, que a hostilidade aparece: “com o cogito começa a luta das consciências na qual, como diz Hegel, cada uma deseja a morte da outra. Para que a luta comece, para que cada consciência expulse as presenças estrangeiras que ela rejeita, é preciso que todas se lembrem de sua coexistência pacífica no mundo da criança”. 

A criança serve freqüentemente de modelo para Merleau-Ponty na Fenomenologia da percepção, pois a ela mostra uma percepção mais aberta e mais ampla, aquém da nossa percepção habitual, objetiva e cristalizada. Merleau-Ponty convida-nos a reativar essa percepção primordial, na qual a separação entre eu, outro e objetos cotidianos deixaria de ser tão acentuada. Sob tal perspectiva, é possível conceber a Fenomenologia da percepção como a tentativa quase terapêutica para desvelar uma percepção oculta, uma experiência secreta cuja reativação possibilitaria reencontrar a coexistência harmoniosa das consciências, anterior à hostilidade do mundo. 

Lacan e o corpo visto no espelho 
.....
Lacan introduz a noção de desejo para afirmar que o desejo do homem é o desejo de um outro; ou seja, é o desejo de se fazer reconhecer no desejo do outro. A constituição primordial de cada desejo, efetivada pela mediação de uma imagem exterior, impõe de uma só vez a alteridade e a alienação no próprio núcleo deste desejo. ...

Texto na Integra na Revista Cult- 14 de março de 2010
Eran Dorfman é doutor em Filosofia pela Université de Paris VII e autor do livro Réapprendre à voir le monde: Merleau-Ponty face au miroir lacanien (Éditions Springer, 2007)



segunda-feira, 12 de setembro de 2011

SEM COMPAIXÃO



Jorge Forbes
Algo melhor a propor?  Solidariedade – com articulação das solidões
Compaixão é vício ou virtude? Essa pergunta parece uma provocação. Quem ousaria dizer que é um vício, quando a boa moral a tem entre as mais enaltecidas virtudes?
 E, no entanto, esse debate não é novo: Rousseau defende a compaixão ardentemente, Nietzsche a declara vício que atrasa a humanidade: “O sofrimento torna-se contagioso através da compaixão”.


Não entremos no debate filosófico, vamos às ruas, de onde esse debate surge, e façamos uma experiência afetiva. Ao sermos apresentados a uma pessoa, conversemos com ela por uns 15 minutos e, ao nos despedir, digamos da simpatia que nos provocou conhecê-la Depois, façamos o mesmo com outra pessoa, semelhante à primeira, só que no momento da despedida, no lugar de confessarmos nossa simpatia, digamos que ela nos causou forte compaixão. Em qual dos casos a pessoa reagirá melhor? É evidente que será no primeiro, o da simpatia. Dizer para alguém que lhe temos muita compaixão é quase ofensivo. “Simpatia” vem do grego; “compaixão”, do latim. Será que no momento da latinização do primeiro termo, ele foi filtrado pela ideologia judaico-cristã, passando a palavra “compaixão” a carregar o aspecto de piedade que “simpatia” não tem? É uma hipótese bem razoável. Na simpatia, uma pessoa se confraterniza diretamente com a outra; na compaixão, ela se confraterniza em um lugar terceiro, através de um elemento em comum, seja a natureza humana, seja a filiação religiosa, como os irmãos em Cristo ou em Abraão. Na simpatia, sente-se com o outro, não exatamente a mesma coisa; enquanto na compaixão, não se sente, mas entende-se o sentimento do outro, normalmente um sofrimento, porque isso também poderia lhe ocorrer. E, se ocorreu com o outro, e não com o compadecido, é porque o outro foi “escolhido”, daí a piedade.
Esse aspecto se evidencia quando uma pessoa adoece gravemente em uma família. O doente fica mal, porém acariciado; os outros da família ficam bem (embora discretamente envergonhados). Médicos e demais profissionais de saúde tendem ao mesmo tipo de comportamento piedoso. É conhecido o caricato exemplo de uma enfermagem que se acha carinhosa por chamar o paciente idoso de “vozinho”, falado em tom melancólico-doce, com o máximo de diminutivos possíveis: “O vozinho quer agora tomar a sopinha bem quentinha?” Algo melhor a propor? Sim, solidariedade. Solidariedade no sentido de articulação das solidões. Podemos estar com alguém para dividir um prazer, um interesse, ou porque esse alguém nos toca, sem maior explicação; é o sentimento básico da amizade, da simpatia, fundamental para os tempos em que vivemos, de individualidades desgarradas. Não é necessário ter pena – sempre discricionária – de alguém para se estar junto. Menos compaixão, mais simpatia solidária, faz a vida melhorar a pena.
Artigo publicado na revista Psique nº 8 -Novembro 2007