
sexta-feira, 20 de maio de 2011
segunda-feira, 2 de maio de 2011
Jacques Lacan, o analista do futuro
Jacques Lacan,
por Jorge Forbes
É curioso falar de um analista do futuro quando nos acostumamos a pensar em psicanalistas do passado. A idéia que fazer análise seja remexer no velho baú da infância contribuiu para montarmos a caricatura do psicanalista semelhante à antiga imagem do guarda-livros, uma pessoa empoeirada e opaca.
Lacan é um clássico, no sentido que chamamos de clássico aquilo que resiste ao tempo, por não se deixar apreender em qualquer interpretação classificatória. Sempre há mais Lacan do que aquilo que se pode apreender, da mesma maneira que há sempre mais Sófocles que qualquer representação de Édipo Rei, ou mais Shakespeare , ou mais Van Gogh, ou mais Drummond, ou mais Tarsila. Por isso essas pessoas não morrem, porque não há túmulo que as contenha, não há palavra que as explique. Se Foucault tinha razão ao dizer que a palavra é a morte da coisa, os clássicos são mais coisa que palavra, e por isso falamos deles sem esgotá-los. Lacan evitou que a psicanálise se transformasse em método tolo de adaptação social, armadilha a qual, infelizmente, alguns pós-freudianos não conseguiram escapar. Ele pôs o futuro na psicanálise: demonstrou que qualquer tentativa de explicação de si mesmo acaba, inevitavelmente, em um ponto duro, real, resistente – como em física fala-se em resistência dos materiais – a qualquer nomeação, semelhante ao “que será que será que nunca tem nome nem nunca terá”, cantado por Chico e Milton.
Na impossibilidade de se garantir através de uma explicação causalista e reducionista do seu passado, o analisando é levado, na orientação lacaniana, a inventar um futuro para si próprio, sem nenhuma outra razão além daquela do seu desejo, posição nem sempre muito confortável, apesar de entusiasmante, pois trata-se de uma invenção sem garantia repartida, sem o beneplácito da aceitação grupal, seja de que grupo for. Atenção: que não se pense ou se confunda esta invenção do futuro, na lógica do desejo, com qualquer individualismo barato ou hedonismo de ocasião. A análise lacaniana parece a mais coerente com as conseqüências da globalização sobre as pessoas, com osujeito pós-moderno. Vivemos um momento de transição histórica do sujeito da era industrial para o da era da globalização. O sujeito industrial se caracterizou pelo privilégio do eixo vertical das identificações. É o que explica a organização piramidal da sociedade industrial, presente na família e nas corporações dessa época. Para entender esse sujeito, a estrutura do complexo de Édipo proposta por Freud mostrou toda a sua importância. O complexo de Édipo também é uma estrutura que privilegia o eixo vertical das identificações, haja visto o papel fundamental que o pai tem nesse modelo. Agora, quando entramos na globalização, quando o sujeito não mais se dedica a ser parte de um grande ideal – não há mais grandes ideais – quando a horizontalidade é mais importante que a verticalidade anterior, Lacan propõe que uma análise possa ser conduzida além do Édipo, além das significações consagradas no ideal paterno e de seus representantes. É a análise do futuro, de um sujeito de uma nova era. Estamos começando a desbravar esse caminho, seguindo as pistas deixadas por Lacan.
Três expressões eu poria em relevo, do seu legado: “conseqüência”, “responsabilidade” e “novo amor”.
Conseqüência porque contrariamente ao que possa parecer, palavras não são só palavras, não há nada a ser buscado além delas, e sim nelas, como os poetas que renovam o termo mais banal dando-lhe uma nova dimensão. O analista empresta conseqüência às palavras do analisando. Responsabilidade, não no sentido moral, mas no sentido ético. Lacan diferencia moral – usos e costumes – de ética, posição subjetiva. A psicanálise lacaniana ensina que não há como não se responsabilizar pelo acaso e pela surpresa. A pessoa não é só o que escolhe, voluntariamente livre, mas também o que lhe ocorre : “eu sou o meu acontecimento”. Novo Amor. A psicanálise, dizia Lacan, não foi capaz de inventar um novo pecado, uma nova perversão; talvez, fica a pergunta, seja capaz de inventar um novo amor que não seja voltado ao pai em última instância, mas que, sabendo dele se servir, possa ir além do chamado, em psicanálise, gozo fálico e captar algo do real feminino. Tanto a globalização, quanto a psicanálise de hoje, revelam que entramos em um novo momento, mais propício à essência feminina. Muito da epidemia depressiva de nossos dias fica esclarecida pela desorientação ocasionada pela perda da orientação masculina. Lacan previu estes acontecimentos e deixou os instrumentos para tratá-los : um analista do futuro.
Publicado em O Estado de São Paulo e em Opção Lacaniana : revista brasileira internacional de psicanálise. n.32, de dez.2001, p.52-53 São Paulo: Eolia.
sábado, 23 de abril de 2011
O Sonho Acabou, Viva o Sonho!
Jorge Forbes
Não se fazem mais rebeldes como antigamente. Acabaram os James Deans, os Jimi Hendrix, os Jacarés; as passeatas, as pichações dos muros, as palavras de ordem, as cartilhas do desalienado, os códigos secretos de nome e lugar. Não se sobe mais a Rua Augusta a 120 por hora, mesmo porque seria lento. E por que esse mundo não existe mais é que deixa tanta saudade; uma saudade orgulhosa de quem participou da famosa geração 68.
Ontem, era possível ser rebelde. Vivia-se uma época padronizada do ‘deve ser’. Para tudo havia um manual, uma bula que definia o bom procedimento. Como ter filho, como educar, como casar – com quem, com quantos anos -, como escolher uma profissão – desde que fosse médico, advogado ou engenheiro – como se aposentar, como morrer. Na família imperava o pai; no trabalho, o chefe; na sociedade, a pátria. A essa forma de organização do laço social, em torno a símbolos maiores e aglutinadores, dá-se o nome de organização vertical. A identidade se estruturava verticalmente. Nesse contexto, o caminho da rebeldia estava traçado: contestar os padrões estabelecidos. Daí surgia a sensação de liberdade com o seu riso tenso, sim, tenso, porque se sabia que o que referendava essa liberdade era a morte e ela muitas vezes ocorria. Ameaçava-se com a morte, de variados tipos, dos simbólicos ao real, a quem não obedecesse aos padrões; então, por dedução, morrer era o atestado maior por não ter obedecido aos temidos padrões. A morte era o troféu do rebelde, onde, finalmente, transformava-se em herói. Seu caixão era levado em procissão pela turma. Seus feitos transformados em memória gloriosa e, paradoxalmente, em novos padrões para falsos rebeldes, amantes da contestação pasteurizada, sem risco, que passavam a se vestir como, andar como, dirigir como, falar como o seu herói.
Hoje não é possível ser rebelde. Rebelde a quê? Não há mais um consenso coletivo contra o que lutar, não há grandes grupos fechados em uma bandeira comum, mas pequenas, porosas e flexíveis tribos. Não se pede coerência, acabou o “O que é isso companheiro?”, o tempo é da mistura, do ‘mundo mix’. Se antes a responsabilidade era coletiva frente a uma escolha comum, agora ela é subjetiva, cada um é responsável por suas diferentes escolhas. O lugar da morte também não é mais o mesmo. De ponto final que consagrava uma carreira, ela passa a ponto de partida. Logo, está afastada a morte real, só valem seus representantes alusivos. Os mais conhecidos são os esportes radicais, do tipo: na terra, escalar, no ar, paraglider, no mar, kitesurf. O sucesso desses esportes vem da necessidade não de ir além do limite, como fazia o rebelde, mas, ao contrário, de estabelecer um limite, de saber onde está a morte e de como lidar com ela. Esse verdadeiro exercício cria pontos de ancoragem, raízes, por isso, radicais. É enganoso pensar que a mocidade de hoje é inferior à de ontem. Que hoje, por não haver grandes mobilizações nas ruas, ou inflamados discursos em palanques improvisados, estariam todos perigosamente desinteressados. Esse julgamento vem de velhos conceitos. O mais interessante é descobrirmos as novas formas de organização do amor, ou seja, no acadêmico, do laço social, do “estar ligado”.
Os laços sociais passaram de verticais a horizontais. Porque não há mais padrões universais, falamos em sociedade de rede. E também, pela mesma razão, vivemos um renascimento cultural. A cultura se renova quando há necessidade de se reinventar o mundo; é o nosso caso. Que tal em vez de acharmos que os jovens estão perdidos por não se juntarem contra os governos corruptos - para dar um exemplo do que antes mobilizaria muitos - vermos que eles estão apontando para outros lugares e formas de governo; não nas capitais inventadas para isso, nem nas mãos de fantoches decadentes e obscenos. Não se muda mais a vida com grandes exemplos, ou grandes prisões, mas com detalhes; motivo de falarmos em epidemia. Para o bem e para o mal, as epidemias são transformadoras, em sua capacidade de tocar a cada um de um jeito. Se os jovens não dialogam mais, eles monologam; eles inventaram a capacidade de articular os monólogos - “monólogos articulados” - a causar arrepios nos iluministas. Um claro exemplo é a música eletrônica, não tem palavras, não tem um só sentido, mas faz muita gente estar ligada. O sonho acabou, viva o novo sonho!
Artigo publicado na Revista TRIP 163
fevereiro 2008
domingo, 17 de abril de 2011
A vida é honra
por Jorge Forbes
Na mesma semana, dois fatos contrários. Enquanto festejávamos a moça que, visitando o túmulo do seu pai, avisa a polícia de um assassinato cometido pela própria polícia, somos confrontados ao moço que loucamente invade uma escola e mata mais de dez alunos, ferindo gravemente outros tantos, para ao final se suicidar.
A alegria que nos deu o gesto da moça desapareceu na enxurrada de sofrimento provocada pela morte das crianças na idade do sonho. Fica uma pergunta no ar de todas as mídias: Por que?
Por que ele fez isso, o que o motivou, com qual intenção, era psicótico, fiel de religiões bárbaras, possuído pelo demo, desorientado sexual, revoltado pela adoção, por que, por que? E toca-se a perscrutar seu passado, seus escritos, conversar com familiares, vizinhos e conhecidos, refazer seus percursos, tudo na tentativa de encontrar supostos elos lógicos que justifiquem o assassinato de tantas crianças. Pululam profetas do passado lutando levianamente pela audiência televisiva.
Cá entre nós - paremos um pouquinho - será que alguém seriamente pensa que existiria uma lógica que explicaria essa atrocidade? Uma determinação genética ou cultural assassina? Não me parece crível. O que me é mais convincente é que a sociedade, de tão assustada frente a seu próprio horror, tenta inventar respostas que justifiquem o injustificável, que a assegure que aquela pessoa é diferente de todas outras, enfim, que não tem nada a ver comigo, nem com você.
A presidente Dilma, no momento do ocorrido, declarou que o Brasil não estava acostumado a esse tipo de crime. É certo, não estava acostumado, mas, como se viu, não estava imune. Associamos essa modalidade criminosa mais à América do Norte e a alguns países da Europa, que nos antecederam em ocorrências. Vivemos uma era na qual, se não tomarmos cuidado, descambaremos para a banalização radical da vida. Longos amores já são desfeitos em curtos e-mails: - “Fui”. Pessoas que nos desagradam não merecem resposta, basta “deletar”, palavra nova que associa uma pessoa a uma letra: um toque e pronto, ela desaparece. Sim, sei que o abismo entre os exemplos é enorme, mas, insisto: que nome se dá a “matar” na gíria criminosa se não, “apagar”?
Para complicar ainda mais nosso estarrecimento, como não perceber a ânsia desses assassinos em quererem fazer de sua morte um acontecimento? Esse é um padrão que se repete em todos os casos: se tive uma vida deletável, terei uma morte memorável.
A solução não reside, por tudo isso, no aumento de segurança armada dos estabelecimentos públicos. Seria uma atitude que corresponde a uma visão muito reduzida do que nos ocorre. Pode acalmar, de imediato, angústias desesperadas, mas nem resvalará no problema que nos abate.
Voltemos à moça do cemitério e a seu gesto. Ela contrariou todas as ordens de salvaguarda pessoal que nos doutrinam nas delegacias e na mídia. – “Jamais responda a um atacante, não olhe para ele, abaixe a cabeça, entregue tudo para não entregar a vida, não fuja, fale docemente, chame de senhor, não defenda alguém que está sendo atacado, etc, etc.” A moça foi muito desobediente. Naquele cemitério vazio e afastado, ela, sozinha, homenageava seu pai morto. De repente um assassinato – e por policiais – na sua frente. Fugir, se amedrontar, se esconder em um túmulo vazio, como lhe ensinaram? Ao contrário, altivamente, cheia de orgulho humano, pois se trata muito mais de honra que de coragem, ela vai a um telefone público, liga para a polícia militar e descreve calmamente e em detalhes o que está presenciando. E ainda mais, ao ver a aproximação dos homens fardados é ela que toma a iniciativa de abordá-los e de inquiri-los sobre o que acabaram de fazer. Ela deve tê-los assustado, não por uma força maior que a deles, mas por agir em outro registro, aquele que lhe dizia que sim, é claro que ela podia fugir, mas viver não é sobreviver, salvar a pele não é salvar a vida, uma vida vai bem além da pele.
Imagine, caro leitor, uma sociedade composta de pessoas do tipo dessa moça, pessoas que não respondem às armas pelas armas, mas sim respondem às armas pelo constrangimento, que aposta que o pior assassino pode ser tocado em um ponto do constrangimento humano. Mesmo que difícil, não é utópico como o exemplo da moça o demonstra, e o primeiro passo é recuperarmos a noção que viver é muito mais que sobreviver e que não se vive, não se respira em uma sociedade de deletáveis.
sexta-feira, 8 de abril de 2011
"Há um quê na presença física que é insubstituível"
Preciso de você
Cada pessoa precisa de alguém que o ajude a chamar o seu êxtimo, de meu íntimo
Jorge Forbes
A jornalista me pergunta impressionada a razão de novas pesquisas constatarem que, contrariamente ao que muitos esperavam, o povo da internet cada vez mais associa seus passeios na rede com a necessidade de estar junto. Esse fato relativiza as críticas morais que bradam ameaçadores avisos anunciando que o mundo estaria perdido, pois a www - World Wide Web – seria uma teia perigosíssima que estaria aprisionando nossa pobre juventude, em um isolacionismo narcisista e emburrecedor.
Essa notícia chega ao mesmo tempo em que o Papa se precipita em condenar um aplicativo para smart-phones, através do qual o fiel antenado se confessaria on line, sem a necessidade de se ajoelhar na madeira dura de um confessionário escurecido por muitos pecados ali penitenciados. Ao menos dessa vez, ufa!, o Papa mostrou que “tá ligado”, pois a web não substitui a presença física.
Na mesma vertente, podemos falar da repetitiva pergunta se é possível fazer análise por skype, ou serviço semelhante, sem ter que se preocupar com o terrível trânsito das grandes cidades, bem como se garantir em ter seu analista à mão, ou melhor, na tela, entre um mergulho e outro, em uma ilha paradisíaca, do outro lado do mundo.
Não dá. Há um quê na presença física que é insubstituível. E se dizemos “um quê” é exatamente pelo fato de não podermos precisar o que é isso da presença física que não sabemos traduzir em nenhum idioma e por nenhum meio, razão pela qual não a podemos substituir, pois, como celebrou Michel Foucault: “a palavra é a morte da coisa”; se falamos de algo, substituímos o algo pela palavra e não precisamos mais dele.
Em um mundo que quebrou os paradigmas cartesianos de espaço e tempo, jogando-nos no furacão do ilimitado sem fronteiras, não há nada a estranhar na necessidade da presença física do outro, do corpo do outro, do seu enigma, do cheiro, cor, som, movimento, textura, olhar, que não sabemos traduzir em bytes.
Esse enigma do outro é o remédio para a angústia tão atual, por nos termos visto transformar em habitantes de lugar nenhum.
Seis mil moças e moços geeks se acotovelaram por uma semana, em São Paulo, em uma festa chamada Campus Party. Seis mil!, em um pavilhão de exposições. É tão importante estarem juntos, que um nipo-brasileiro, morando ao lado do local da festa, trocou o conforto de seu quarto, por uma tendinha de campanha, verdadeiro elogio do desconforto.
A presença do outro nos remete ao mais essencial de nós mesmos. Se fôssemos honestos, parodiando Vinícius, jamais diríamos expressões do gênero: “no meu íntimo”. E isso porque o que nos escapa é exatamente o nosso íntimo. Diríamos, melhor, com Lacan: “no meu êxtimo”, sim, porque o meu íntimo me é tão estranho – quem já passou por uma análise sabe bem o que estou descrevendo – que melhor chamá-lo de êxtimo, clara alusão ao estranho e ao externo de si mesmo, que habita cada um.
Podemos nos livrar de muita coisa na vida, mas não da gente mesmo, em especial desse ponto íntimo desconhecido, promotor de nossas paixões, essa força estranha vivida na sensação do “mais forte que eu”. A presença física do amigo, do amado, do familiar, do próximo, nos reconecta com esse ponto fundamental, âncora de nossas existências, ponto transcendente de nossa imanência, se quisermos nos valer do discurso da Academia.
Nesse mundo de aparente tudo pode, e de em tudo estou, não por isso devemos nos assustar que ao lado do aumento dos acessos aos meios virtuais, vejamos crescer em paralelo os lugares de encontro físico, sejam eles campus parties, igrejas, consultórios, bares, cruzeiros. Os motivos são variados e o que neles se realiza, também, mas a necessidade é uma só: estar junto. Na era da pós-modernidade, onde o laço social das identificações é predominantemente horizontal, nos damos conta que o principal afeto, o mais fundamental afeto, é o da amizade.
Cada pessoa precisa de alguém que o ajude a chamar o seu êxtimo, de meu íntimo.
(artigo publicado na revista Psique nº 63, março 2011)
segunda-feira, 21 de março de 2011
O chato e o poeta
Jorge Forbes
-Artigo publicado em Psique Ciência e Vida-
Freud sempre se preocupou com coisas simples, característica dos gênios: achar o novo no que todo mundo vê, mas que não enxerga. Entre suas simplicidades, ele escreveu dois artigos em 1908 que sempre me chamaram a atenção pelo tema que abordam e que assim eu resumiria: por que tem tanta gente chata no mundo, aquela que começa a contar um caso e já vai dando sono, e tem gente interessante, que contando a mesma história nos desperta e interessa? Os dois textos são complementares, chamam-se: A Novela Familiar do Neurótico (Romances Familiares) e O Poeta e o Fantasiar (Escritores Criativos). Bastam os títulos para termos uma idéia da anteposição entre o neurótico e o poeta, para o vienense. Freud se pergunta o que diferenciaria o poeta – no sentido geral daquele que cria e não só o que compõe versos – do homem comum, genericamente, o neurótico. Seriam os temas que escolheriam para tratar que marcariam a diferença entre atrativos e desinteressantes? Um só falaria de coisas importantes e universais e o outro de sua vidinha? A resposta é não, mesmo porque estamos sempre contando a mesma história, ou melhor, tentando completar uma história esburacada, a nossa. O que os diferencia é o tratamento dado ao texto. Um, o neurótico, é invejoso de sua história, ela é só sua: o interlocutor tem que entendê-la tal qual, nos mínimos detalhes, arriscando inclusive ter que responder a uma sabatina para provar a boa atenção. O que ele teme é que vejamos suas fantasias pessoais naquilo que nos diz. “Sentiríamos repulsa, ou permaneceríamos indiferentes ao tomar conhecimento de tais fantasias”, escreve o psicanalista.
O escritor criativo, por sua vez, “quando nos apresenta suas peças, ou nos relata o que julgamos ser seus próprios devaneios, sentimos um grande prazer, provavelmente originário da confluência de muitas fontes.” Freud conclui da seguinte maneira sua reflexão sobre o efeito que um texto interessante nos causa: “A satisfação ... talvez seja devida à possibilidade que o escritor nos oferece de, dali em diante, nos deleitarmos com nossos próprios devaneios, sem auto-acusações ou vergonha.” Sabido o que diferencia um relato do outro, fica a pergunta de como consegui-lo. Partindo da questão da auto-acusação, analisemos. A primeira idéia, a mais banal – e equivocada – seria dizer que o poeta, sempre no amplo sentido, é um desaforado, um sem-vergonha. Nada disso. Melhor será notar que o poeta está mais livre do peso da expectativa do outro sobre ele, que um homem comum. Ele não fica tentando controlar como o outro vai entender o que ele diz; seria até engraçado imaginar a cena de um escritor que tentasse ao mesmo tempo escrever e impor como deveria ser interpretado.
O poeta não teme o mal-entendido porque aprendeu que ele não é um erro, é estrutural da espécie humana, como demonstrou Lacan. E se a segurança não vem do “o que o outro vai pensar de mim”, de onde ela vem? Exatamente da certeza constitutiva do mal-entendido que o faz trocar o julgamento do outro, frente ao qual somos invariavelmente culpados, por uma responsabilidade singular, que o leva a criar histórias que recobrem frouxamente o espaço do sem palavra. ´Poeta´ vem do termo ´poiesis´, justamente: criar, inventar, fazer. Por uma história de um neurótico, ninguém passa, só assiste; por uma história de poeta, muitas outras histórias passam. Com sua posição de responsabilidade ética, e por sua estética aberta, generosa, o poeta faz com que nós também nos livremos das auto-acusações acachapantes e nos arrisquemos a inventar soluções mais singulares a nossos desejos Deixo para comentar futuramente um terceiro tipo de texto, o psicótico. Seria, falando brevemente, aquele escrito sem pé nem cabeça, do qual só se depreende ruído de palavras e nenhum efeito de sentido. Adianto que não se deve confundir texto psicótico, com o quadro psicopatológico. Escrito psicótico não é aquele escrito por um psicótico. E, para finalizar, uma lembrança. Com facilidade podemos extrapolar o que comentamos sobre os textos, para os relatos das pessoas em geral.
Quem diria que, além de nos explicar, Freud deu dicas para um mundo menos chato?!
domingo, 6 de março de 2011
Ecce Homo
Artigo publicado na revista Psique nº 62 – fevereiro de 2011
Jorge Forbes
Não se fazem mais homens como antigamente”, reclama a velha senhora na soleira de sua porta, ao ver chegar o amigo da sua neta, encostando o carro. Arrumado demais, combinado demais, manso demais, indeciso demais, enfim – ela não quer confessar, mas caraminhola baixinho – o moço lhe parece feminino demais. A velha senhora tem alguma razão em observar que os homens, hoje, não são feitos da mesma maneira da qual ela estava habituada. Intuitivamente, ela nota – mesmo que não aceite – que a identidade humana é maleável, que muda conforme o tempo, abraçando o relevo da paisagem de sua época.Estamos assistindo a uma mudança de um período no qual o laço social que era vertical, gerando estruturas piramidais – o que provocava o estabelecimento de relações hierárquicas e padronizadas – passa a uma nova situação, na qual as relações humanas são horizontais e múltiplas, em tudo, muito diferentes dos modelos estáveis anteriores. No que toca à identidade masculina, ela passou de uma inflexibilidade poderosa, coerente com a verticalidade disciplinar do mundo de ontem, para uma participação interativa flexível, exigência do tempo presente. Traduzindo em miúdos: um homem era visto, caricaturado e admirado como alguém forte e fi rme em suas decisões – sem frescuras, sem dúvidas, sem titubeios – inflexível em sua vontade pétrea, como se elogiava barrocamente. Agora, nesses novos tempos, mais importante que dar ordens é convencer e seduzir; melhor que ser sempre igual, é mostrar-se criativo, respondendo diferentemente, conforme o aspecto de cada situação. Para as novas exigências, a carapaça do típico macho envelheceu, se despregou do seu corpo, caiu, e ele se vê tão perdido quanto cobra trocando de pele, ou siri que ficou nu e tem medo de ser catado. Reage atordoado procurando novas formas de ser e aparecer que lhe devolvam a segurança perdida; hipertrofia os traços machistas em academias fabricantes de abdomens tanquinhos, ao mesmo tempo em que vai perdendo a vergonha de confessar seu interesse no melhor creme, na cirurgia plástica, na mais atraente e chocante combinação de roupa. Pobres homens, a pós-modernidade não lhes é em nada tranquila. Enquanto as mulheres nadam de braçadas, pois o detalhe, a singularidade, o inusitado – características próprias à horizontalidade despadronizada – são a sua praia, os homens sofrem, se angustiam, por se verem sem a bússola do dever bem definido que lhes orientava tão corretamente e, tanto quanto aquela velha senhora, também desconfiam de sua própria sexualidade. Buscam os mais diversos consolos, alguns bem engraçados e paradoxais, como os grupos do Bolinha: confrarias das mais diversas, mais comuns as de vinho e as de comida, que, sob o manto disfarçador do refinamento do gosto, escondem a mais básica vontade de perguntarem uns para os outros como cada qual está se virando diante dessa verdadeira revolução. Isso, quando não contratam treinamentos supostamente disciplinadores e eficientes de tropas de elite, que tentam loucamente instalar em suas empresas, onde gostam de se travestir em generais incontestados, fazendo que os funcionários incomodados “peçam para sair”, tal como aprenderam naquele filme de sucesso. Pouco a pouco, ficará claro para a maioria que a masculinidade não se baseia em nenhum grupo de iguais – sejam eles confrarias ou exércitos –, mas, tudo ao contrário, na possibilidade de suportar a expectativa da diferença, aquela representada pelo enigma de uma mulher frente a um homem. De nada vai lhe adiantar querer calá-la – ou calá-lo, o enigma – com alguma resposta pronta do gênero de bolsas ou perfumes de marcas supostamente exclusivas – mas em algo tão singelo, quão difícil: sabendo fazê-la rir, sonhar, se surpreender. Ecce Homo.
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