Escrevo só porque
Há uma voz dentro de mim
Que não se cala nunca.
(Sylvia Plath)
Há uma voz dentro de mim
Que não se cala nunca.
(Sylvia Plath)
Uma questão tem-me movido em minhas pesquisas sobre o processo da criação literária, revelando um aspecto que, não sendo em geral percebido imediatamente na relação da arte com o psíquico, parece interpelar a psicanálise. Poderíamos colocar essa questão de um modo simples, embora sua resposta exija certo esforço: por que será que, para alguns, a criatividade constitui uma via de transformação e prazer onde antes havia sofrimento, enquanto para outros essa mesma via não só não liquida o sofrimento como também parece alimentá-lo? Na minha exposição tentarei jogar alguma luz, ainda que modesta, sobre esse problema complexo. Sem nunca ter tido a pretensão de esclarecer completamente o enigma do processo criativo, Freud o relacionava, como sabemos, ao conceito de sublimação, um dos “destinos pulsionais”, como ele a descreveu. Neste ponto é importante lembrar a advertência feita por Sarah Kofman, em seu livro A infância da arte, ao afirmar que devemos pensar na sublimação não como um conceito moral, mas sim como um conceito metapsicológico. Vista dessa maneira, a noção de sublimação nos possibilita examinar o processo criativo do mesmo modo que faríamos para analisar qualquer formação relativa ao campo pulsional, levando em conta à dinâmica nela envolvida, sua determinação inconsciente e sua economia. Esta perspectiva permite pensarmos no que estaria envolvido na metapsicologia do processo criativo em geral e na escrita literária em particular, destacando os elementos que se relacionam às suas funções e limites. Na dimensão da escrita literária, podemos descrever esses limites em extremos que ora se distanciam ora se aproximam e se misturam em uma espécie de fertilização cruzada, para produzir o texto: o pólo da vida e o pólo da obra; o pólo do transbordamento pulsional e o pólo da simbolização; o pólo do excesso e o pólo da contenção, o pólo funcional e o pólo disfuncional. Para continuar respondendo à pergunta formulada no início, precisamos ter em mente três das noções mais conhecidas sobre a criatividade. Vou retomá-las rapidamente para ver em que medida elas nos ajudam. A primeira dessas noções segue as primeiras formulações de Freud sobre a sublimação e atribui a esse peculiar destino pulsional a capacidade de sempre promover uma espécie de apaziguamento do sofrimento psíquico, organizando-o numa direção construtiva e benéfica. Segundo essa visão, ali onde os sintomas são os resultados de um arranjo conciliatório – nem sempre condenado ao fracasso, é verdade – entre as forças antagônicas que fazem parte do psiquismo, a sublimação, não sendo propriamente uma conciliação, seria uma alternativa mais “saudável” do que as defesas desgastantes que possuímos para lidar com nossos conflitos. Desse modo a sublimação seria um processo que transforma o mundo interno daquele que cria, em algo organizado senão prazeroso. Segundo uma outra concepção, de inspiração lacaniana, pelo menos para alguns indivíduos a criatividade, não se opondo à formação dos sintomas e de outros fenômenos, permite também alguma forma de inscrição subjetiva. Na medida em que por meio da criação o sujeito, digamos, firma a singularidade da sua assinatura fazendo, assim, um ponto de amarração em seu posicionamento subjetivo – como nos mostrou Lacan em “Joyce, o Sintoma” –, o sofrimento psíquico encontraria na via da criação uma expressão diferente dos sintomas da neurose e das manifestações da psicose, naquilo que os caracteriza como expressão cifrada, repetida e não compartilhável. Uma terceira formulação, derivada desta última concepção, entende que a especificidade da sublimação talvez tenha muito mais a ver com o efeito que resulta na transformação compartilhável de uma experiência subjetiva singular, ou seja, no tipo de laço social estabelecido através do produto artístico, do que com uma suposta interioridade de onde provém o impulso criativo. Ninguém pode negar que tais possibilidades existem, e certamente é incontável o número de pessoas que conseguiram encontrar uma outra via de expressão e de transformação de seus problemas, através da arte e da criação literária, ainda que isso não tivesse sido o principal motivo que as levou a esse campo.
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Ana Cecília Carvalho
Psicanalista. Escritora e professora-adjunta no Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, onde leciona na Graduação em Psicologia e na Pós-Graduação (Mestrado e Especialização) em Psicanálise. É doutora em literatura comparada e autora dos livros A poética do suicídio em Sylvia Plath (BH: Editora da UFMG, 2003) e Uma mulher, outra mulher (BH: Lê, 1993), entre outros
FREUD, S. (1915) Os instintos e suas vicissitudes. Edição Standard Brasileira
das obras completas, vol. XIV.Rio de Janeiro: Imago, 1976.
KOFMAN, Sarah (1996). A Infância da Arte: Uma Interpretação da Estética
Freudiana./Tradução Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.
LACAN, J. O Seminário - Livro 23 - O sinthoma. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 2007.