segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

"DENTRO DE MIM"

Escrevo só porque
Há uma voz dentro de mim
Que não se cala nunca.

(Sylvia Plath)

Uma questão tem-me movido em minhas pesquisas sobre o processo da criação literária, revelando um aspecto que, não sendo em geral percebido imediatamente na relação da arte com o psíquico, parece interpelar a psicanálise. Poderíamos colocar essa questão de um modo simples, embora sua resposta exija certo esforço: por que será que, para alguns, a criatividade constitui uma via de transformação e prazer onde antes havia sofrimento, enquanto para outros essa mesma via não só não liquida o sofrimento como também parece alimentá-lo? Na minha exposição tentarei jogar alguma luz, ainda que modesta, sobre esse problema complexo. Sem nunca ter tido a pretensão de esclarecer completamente o enigma do processo criativo, Freud o relacionava, como sabemos, ao conceito de sublimação, um dos “destinos pulsionais”, como ele a descreveu. Neste ponto é importante lembrar a advertência feita por Sarah Kofman, em seu livro A infância da arte, ao afirmar que devemos pensar na sublimação não como um conceito moral, mas sim como um conceito metapsicológico. Vista dessa maneira, a noção de sublimação nos possibilita examinar o processo criativo do mesmo modo que faríamos para analisar qualquer formação relativa ao campo pulsional, levando em conta à dinâmica nela envolvida, sua determinação inconsciente e sua economia. Esta perspectiva permite pensarmos no que estaria envolvido na metapsicologia do processo criativo em geral e na escrita literária em particular, destacando os elementos que se relacionam às suas funções e limites. Na dimensão da escrita literária, podemos descrever esses limites em extremos que ora se distanciam ora se aproximam e se misturam em uma espécie de fertilização cruzada, para produzir o texto: o pólo da vida e o pólo da obra; o pólo do transbordamento pulsional e o pólo da simbolização; o pólo do excesso e o pólo da contenção, o pólo funcional e o pólo disfuncional. Para continuar respondendo à pergunta formulada no início, precisamos ter em mente três das noções mais conhecidas sobre a criatividade. Vou retomá-las rapidamente para ver em que medida elas nos ajudam. A primeira dessas noções segue as primeiras formulações de Freud sobre a sublimação e atribui a esse peculiar destino pulsional a capacidade de sempre promover uma espécie de apaziguamento do sofrimento psíquico, organizando-o numa direção construtiva e benéfica. Segundo essa visão, ali onde os sintomas são os resultados de um arranjo conciliatório – nem sempre condenado ao fracasso, é verdade – entre as forças antagônicas que fazem parte do psiquismo, a sublimação, não sendo propriamente uma conciliação, seria uma alternativa mais “saudável” do que as defesas desgastantes que possuímos para lidar com nossos conflitos. Desse modo a sublimação seria um processo que transforma o mundo interno daquele que cria, em algo organizado senão prazeroso. Segundo uma outra concepção, de inspiração lacaniana, pelo menos para alguns indivíduos a criatividade, não se opondo à formação dos sintomas e de outros fenômenos, permite também alguma forma de inscrição subjetiva. Na medida em que por meio da criação o sujeito, digamos, firma a singularidade da sua assinatura fazendo, assim, um ponto de amarração em seu posicionamento subjetivo – como nos mostrou Lacan em “Joyce, o Sintoma” –, o sofrimento psíquico encontraria na via da criação uma expressão diferente dos sintomas da neurose e das manifestações da psicose, naquilo que os caracteriza como expressão cifrada, repetida e não compartilhável. Uma terceira formulação, derivada desta última concepção, entende que a especificidade da sublimação talvez tenha muito mais a ver com o efeito que resulta na transformação compartilhável de uma experiência subjetiva singular, ou seja, no tipo de laço social estabelecido através do produto artístico, do que com uma suposta interioridade de onde provém o impulso criativo. Ninguém pode negar que tais possibilidades existem, e certamente é incontável o número de pessoas que conseguiram encontrar uma outra via de expressão e de transformação de seus problemas, através da arte e da criação literária, ainda que isso não tivesse sido o principal motivo que as levou a esse campo.

Pesquisa/texto-sueliaduan
Título no blog -sueliaduan

Ana Cecília Carvalho
Psicanalista. Escritora e professora-adjunta no Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, onde leciona na Graduação em Psicologia e na Pós-Graduação (Mestrado e Especialização) em Psicanálise. É doutora em literatura comparada e autora dos livros A poética do suicídio em Sylvia Plath (BH: Editora da UFMG, 2003) e Uma mulher, outra mulher (BH: Lê, 1993), entre outros


FREUD, S. (1915) Os instintos e suas vicissitudes. Edição Standard Brasileira
das obras completas, vol. XIV.Rio de Janeiro: Imago, 1976.

KOFMAN, Sarah (1996). A Infância da Arte: Uma Interpretação da Estética
Freudiana./Tradução Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.

LACAN, J. O Seminário - Livro 23 - O sinthoma. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 2007.


terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Você está em análise?


Você está em análise? Etâ perguntinha difícil de responder; vejamos. Primeiro não, basta você dizer que vai a um psicanalista bem titulado, tantas vezes por semana. O carteiro do analista também vai lá com freqüência e nem por isso está em análise. Ficou conhecida a história de um paciente que após um bom tempo diz a "seu analista" que está chegando ao fim de seu trabalho. Este lhe responde: - "Engano seu, penso que o senhor está prestes a começar". Entrar em análise é mudar de posição subjetiva: a pessoa para de referir suas queixas às cenas atuais de seu cotidiano e passa a se entender em uma "Outra Cena", como dizia Freud. Isso é difícil de conseguir, pois a realidade sempre alivia o comprometimento de cada um em seu mal-estar, razão pela qual muitas pessoas adoram viver um inferno de vida. Se quisermos traduzir em conceito, entrar em análise é sair de uma moral dos costumes e instalar na ética do desejo.
Segundo, há que se conhecer a diferença entre Psicanálise e o mar de psicoterapias que são oferecidas. Se até para o profissional, nem sempre é clara, imagine para o leigo. O termo "Psicanálise" adquiriu certo valor de mercado e acaba sendo o cobertor genérico de corpos disciplinares muito diferentes, o mais das vezes, opostos. Em síntese, praticamente todas as psicoterapias seguem o modelo da ética médica: um se queixa, o outro trata; um não sabe, o outro sabe; um é paciente, o outro é atuante. Arrisquemos uma definição: no fundamento do que se chama Psicanálise está sempre - sim - sempre responsabilizar o sofredor em seu sofrimento. Não culpar, atenção, responsabilizar e de uma responsabilidade muito diferente da responsabilidade jurídica, que se baseia na consciência dos fatos. Seria até engraçado que a prática do inconsciente exigisse a responsabilidade consciente. A responsabilidade em Psicanálise, contrariamente à jurídica, é a responsabilidade frente ao acaso e à surpresa. Não dá para ninguém se safar de uma situação dizendo: - "Ah, só se foi o meu inconsciente", como se ele fosse 'um moleque irresponsável que não tem nada a ver comigo'. A Psicanálise se define por sua ética, como queria Lacan, e a ética da Psicanálise é o avesso da ética médica, por conseguinte, das psicoterapias. Isso não quer dizer que uma coisa seja melhor que a outra, mas que é fundamental reconhecer as diferenças para que haja uma colaboração efetiva entre os campos clínicos e não mútuo borrão, como soe acontecer...."


Artigo, na íntegra, publicado na Revista Psique - número 51

Jorge Forbes: é psicanalista e médico psiquiatra, em São Paulo.
É um dos principais introdutores do pensamento de Jacques Lacan no Brasil, de quem frequentou os seminários em Paris, de 1976 a 1981. Teve participação fundamental na criação da Escola Brasileira de Psicanálise, da qual foi o primeiro diretor-geral.
Preside o IPLA - Instituto da Psicanálise Lacaniana e o Projeto Análise


domingo, 5 de dezembro de 2010

"Desejo Real"

A problemática da verdade está presente na obra de Lacan desde o início, acentuando-se à medida que ele avança. Assim, é raro um texto em que ele não a aborde, de uma ou outra forma. Já em l936, Lacan relaciona o conceito de verdade à natureza da realidade enquanto realidade psíquica, ou seja: àquilo que é verdade para o sujeito. Assim, o conceito de verdade é relativo ao objeto de estudo, e no caso da psicanálise é relativo aos fatos do desejo. Isto quer dizer que o desejo é tão real para o sujeito quanto à realidade factual o é para a ciência positiva.

É, pois, nesse nível da realidade psíquica que se deve situar a questão da verdade, tanto para a psicologia, quanto para a psicanálise. A noção de verdade volta com toda força no texto de 1946 sobre a causalidade psíquica, onde é feita uma crítica vigorosa do organo-dinamismo. Opera-se uma mudança capital: se quer fundar uma psicologia científica, as questões devem ser postas em termos de verdade, e não de realidade. Aí a verdade é posta como condicionando, na sua essência, o fenômeno da loucura, que tem como equivalente a verdade do psiquismo.  Isto já mostra, de alguma forma, o caminho que Lacan tomará: a adoção de um conceito de verdade avesso à conaturalidade com o real. É segundo esta perspectiva que vamos encontrar a análise do “caso Dora”, pontuando, através de uma série de "renversements dialectiques", a descoberta da verdade do sujeito.

A questão é retomada na análise do “Homem dos ratos”, cuja articulação com o Poesia e Verdade de Goethe serve de ponto de apoio para colocar de forma clara a questão da ficção e da verdade. Este texto antecipa de alguma forma uma tese que será expressa no “Discurso de Roma”, onde a dialética da palavra plena e da palavra vazia recoloca a questão da verdade em termos que fogem ao binômio verdadeiro-falso. Aí fica claro: a psicanálise busca a verdade, e não a realidade. E a verdade nasce na palavra A partir de então a verdade vai aparecer em quase todos os textos de Lacan, como algo intrínseco à natureza e ao próprio destino da psicanálise e sua prática. Neste sentido, o Seminário I é o início de uma seqüência segundo a qual a questão da verdade vai se repetir em diferentes momentos da obra como algo crucial.

Afinal, se a descoberta de Freud põe em questão a própria verdade), o de que se trata é de constituir um saber acerca da verdade o sujeito desenvolvendo aí a sua verdade pois a dialética da verdade é o que está no coração da descoberta analítica. Por isso, em 1977 Lacan dirá que ao longo "desses 25 anos"se esforçou para dizer a verdade acerca do saber que funda a psicanálise. A fim de evitar a "reverência idólatra pelas palavras" e de vigiar pelo seu uso, convém se perguntar de que verdade Lacan fala, antes que se dê livre curso a mais uma "palavra ídolo” (Heidegger). Quando Lacan usa a palavra "verdade" o que quer ele dizer? Qual o seu conceito de verdade? Será o mesmo de adaequatio rei et intellectus, tão antigo quanto à própria metafísica? Convém saber do que se fala, pois, a dizer do próprio Lacan, há um logro fundamental na linguagem humana, e, se por um lado a palavra introduz no real a dimensão de verdade, por outro ela é fundamentalmente enganadora.


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Breve discurso sobre a verdade em Lacan
Luís F.G. de Andrade

Limites da sublimação na criação literária
Ana Cecília Carvalho