domingo, 23 de janeiro de 2011

“A diferença que se é”

Jorge Forbes

Sucesso, êxito e destaque nos colocam, muitas vezes, fora do senso comum, Nos diferenciando dos outros. É desta forma que nos sentimos sozinhos, deslocados do nosso meio social e angustiados.

Usamos indistintamente três palavras para definir um mo­mento de exaltação por uma conquista, são elas: sucesso, êxito, destaque. Notem como já toquei em artigo anterior, que elas têm algo em comum, a saber, dizem que alguma coisa fica de fora. ‘Sucesso’ vem do latim cedere, que dá em português ‘ceder’. Sucesso é o que vem depois, como em ‘sucessão’, em ‘suceder’. Como diz a canção, com o sucesso “nada mais será como antes”: deixa-se um estado, abre-se um outro, desconhecido, no qual será preciso aprender a habitar. ‘Êxito’ vem também do latim exit, palavrinha que aprendemos o sentido nos cinemas da nossa infância, pois estava sempre escrita sobre a porta de saída (em luz verde ou vermelha). ‘Êxito’ se traduz em sair, em deixar. Até quando se deixa a vida, o jargão médico pomposamente disfarça a dor proclamando: -”Obteve êxito letal”. ‘Destaque’, também de base latina, destaccare, retirar, separar, tem origem menos bem definida, entre o germâni­co, o espanhol e o francês, vide Houaiss. No francês, ‘destaque’ viria de ‘détacher’, o que quer dizer se desligar, sair do nó do rolo. No espanhol, ‘salientar’, e no germânico, sair da ‘estaca’. Essas três acepções contradizem o bom senso que pensa – e pensa sem­pre mal esse tal de bom senso –que é formidável ser alguém de destaque,que o duro é ser medíocre, comum, genérico. Nada disso.Arriscaria dizer que recebo no consultório mais sofrimentos pelo su­cesso que pelo seu contrário. É claro que ninguém chega dizendo: – “Vim aqui porque comprei a casa dos meus sonhos”, ou algo parecido, não, mes­mo porque até o leigo sabe e tem medo de ser taxado de masoquista. As pessoas se queixam aproximadamente sempre das mesmas coisas porque no fundo a queixa é uma interpretação de que algo não vai bem, e o arsenal de queixas que a sociedade legitima é restrito, daí suas repetições. É como os nomes: temos muitas Marias, Lui­zes  Albertos, Sofias, porque o nome de uma pessoa é escolhido habitual­mente em uma lista socialmente va­lidada. Quando não, aliás, o risco do ridículo é muito grande, todo mundo conhece um exemplo. Voltando às queixas, exatamente para não cair no ridículo, essa alguma coisa que incomoda dentro acaba rece­bendo um nome que não lhe cabe nada bem, confundindo a própria pessoa, quando não, também, seu terapeuta.

“Pertencer ao grupo exige que cada um ceda em parte suas características singulares, para caber no uniforme grupal”.

Leva-se um tempo em Psicanálise para se desfazer dos falsos nomes da dor, dos nomes prêt-à-porter disponí­veis no mercado. Quantas vezes não ouvimos: ”Mas não é possível que eu esteja sofrendo porque consegui a casa dos meus sonhos, isso vai contra o bom senso”. Êta bom senso trapalhão! É muito difícil para a pessoa legitimar que está mal por algo que supostamen­te lhe deveria causar o bem. Nós sofremos no sucesso, no êxito, no destaque porque aí ficamos sós. O fracasso é solidário, mas a vitória é soli­tária. Se você diz que está transtornado por ter sido assaltado no trânsito, seus interlocutores vão dizer: - “Eu também”, “Eu também”, “Eu também”. Agora, se você diz que conseguiu finalmente sua casa nova e maravilhosa, vão dizer: - “Você não tem medo de ser assaltado, morando em uma casa?”.Chamei a atenção para as três pala­vras que comento aqui remeterem a sair, a cair, a se despregar, mas do quê? Do grupo humano a que pertencemos. Não há quem viva fora de um grupo, seja ele qual for: família, escola, profissão, clube, etc. O conforto do grupo, sim, confor­to porque reafirmamos nossa identida­de no grupo de nosso pertencimento, exige que cada um ceda em parte suas características singulares, para caber no uniforme grupal. Aí, quando se dá um momento de forte diferença, por algo que se conseguiu, nos vemos destacados e angustiados exatamente pelo nosso destaque. O que fazer? Existe a resposta tímida e a ousada, se quisermos simplificar. A tímida nos leva a recuar, a diminuir o fato aconteci­do, de preferência a anulá-lo se possível, às vezes até causando um acidente gra­ve. A ousada exige dois movimentos: legitimar a sua diferença, nomeando-a singularmente e incluí-la no mundo, pois ninguém agüenta muito tempo a solidão criativa. É o que fazem os artis­tas: vêem uma banda onde ninguém viu e fazem todo mundo cantar a sua Ban­da, como fez o Chico. O talento nessa operação varia muito, mas o movimen­to é o mesmo. Não importa o tamanho da platéia, o que importa é não recuar sobre a diferença que se é.

Jorge Forbes é psicanalista e médico psiquiatra. É Analista Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (A.M.E.), Preside o IPLA – Instituto da Psicanálise Lacaniana e dirige a Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano da USP.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

"DENTRO DE MIM" Parte II

Escrevo só porque
Há uma voz dentro de mim
Que não se cala nunca.

(Sylvia Plath)

...Contudo existem situações, sobre as quais lhes falarei daqui a pouco, em que tudo parece caminhar numa outra direção, e é então que essas concepções que acabei de rever deixam de nos ajudar. Não só porque mantém inexplicado o fato de que o indivíduo criativo não está livre de desenvolver sintomas ou outros tipos de manifestação de sofrimento psíquico, como também, se nos ampararmos nelas pensando que a sublimação constitui uma saída menos sofrida, logo veremos que não adianta recomendar que alguém pinte um quadro ou escreva um poema, em vez de ficar confinado no sofrimento, mesmo se esse indivíduo possui talento. Além disso, embora essas formulações sobre a sublimação aludam à via de mão dupla que parece existir entre o sofrimento emocional e o processo criativo, elas apenas nos mostram o que, dentro e fora da psicanálise, todos pensam sobre a criatividade, que é o seu lado funcional. Para irmos um pouco além, é preciso destacar uma importante noção sobre a sublimação que Freud apresentou somente em 1923, em uma formulação mais tardia. Essa noção é geralmente pouco citada, eu diria mesmo que é recalcada, na medida em que contém algo inquietante para aqueles que se apegam à idéia de que a arte e a literatura constituem algo sagrado que deve ser mantido intacto protegido da profanação perpetrada pelo olhar da metapsicologia psicanalítica. Se de todo já não era fácil admitir a linha de continuidade que Freud estabeleceu entre a sublimação e a sexualidade infantil, mais difícil ainda será concordar em acompanhá-lo quando, em O Ego e o Id, ressaltar a característica desfusão pulsional envolvida na sublimação, aspecto que, em decorrência da dessexua-lização, “coloca o eu a serviço de objetivos opostos aos das pulsões de vida”. A partir do momento em que a pulsão de morte é introduzida na teoria psicanalítica, Freud pensará que da sublimação resulta uma liberação das pulsões agressivas no supereu, pulsões que lutam contra a libido, ficando o eu exposto “ao perigo de maus-tratos e morte”. Segundo esta formulação, que a meu ver é imprescindível para uma análise do processo criativo e seus destinos, a sublimação não apenas não pode deixar de se referir à angústia ou à dor psíquica (mesmo se pensarmos na criatividade como um destino “mais nobre”, mais feliz ou menos defensivo para o sofrimento) como também em seu interior a possibilidade – senão o necessário retorno – dos elementos sentidos como perigosos internamente implica um risco que a própria noção de “destino menos defensivo” ressalta ainda mais. Em outras palavras, na sublimação é preciso que o artista e o escritor mantenham algum grau de contato com a fonte desses perigos para poder criar. Se nada disso impede que, por meio da produção artística e literária, alguém canalize, ligue e transforme, em diferentes níveis, os derivados do campo pulsional – já que é por meio dessas ligações e dessas transformações que o psiquismo tenta dominar a intensidade de tais processos – não parece, porém, que o indivíduo esteja protegido dos perigos internos por meio da sublimação, já que, como nos adverte Freud, ela própria é potencialmente desorganizadora. Esses aspectos apontam para a existência de limites na economia da sublimação (limites não do conceito, que a meu ver permanece sendo um bom conceito, mas na função dos processos psíquicos descritos sob esse nome). Talvez fosse interessante considerarmos que é a maior ou menor proximidade dos arranjos sublimatórios em relação ao sofrimento que eles buscam dominar que dará conta dos vários destinos da criatividade, tenham eles êxito ou caminhem para o fracasso. Os destinos desses arranjos devem ser entendidos, descritivamente, como variações na distância da sublimação em relação às fontes pulsionais. Se considerarmos estes aspectos, estaremos mais preparados para abordar um fenômeno intrigante, que é a morte trágica daqueles escritores (sobretudo aqueles que, confessadamente, acreditavam na função organizadora, senão terapêutica de seu trabalho) que se suicidaram durante um período de intensa produtividade literária. Resguardada a diversidade dos contextos históricos, culturais e individuais em todos os casos que pudéssemos aqui evocar, talvez seja possível avaliar o tipo de envolvimento existente entre a sublimação e o sofrimento emocional, se examinarmos de perto a relação entre a escrita literária e o suicídio do escritor. Portanto, nós nos vemos aqui obrigados a pensar não só no caráter funcional e prazeroso do processo criativo, mas também nos elementos que circunscrevem os limites da sublimação e indicam a presença de aspectos disfuncionais no interior desse campo. É por esta razão que precisamos recorrer à formulação freudiana de 1923, que mencionei agora há pouco, porque, mais do que as outras concepções, ela nos ajuda a esclarecer a natureza desses limites, que dizem respeito à função da escrita como sublimação e à destrutividade potencial que existe entre a ordem pulsional e os recursos disponíveis para a sua contenção e eventual transformação.

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Ana Cecília Carvalho
Psicanalista. Escritora e professora-adjunta no Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, onde leciona na Graduação em Psicologia e na Pós-Graduação (Mestrado e Especialização) em Psicanálise. É doutora em literatura comparada e autora dos livros A poética do suicídio em Sylvia Plath (BH: Editora da UFMG, 2003) e Uma mulher, outra mulher (BH: Lê, 1993), entre outros