sexta-feira, 8 de abril de 2011

"Há um quê na presença física que é insubstituível"

Preciso de você

Cada pessoa precisa de alguém que o ajude a chamar o seu êxtimo, de meu íntimo 
Jorge Forbes

A jornalista me pergunta impressionada a razão de novas pesquisas constatarem que, contrariamente ao que muitos esperavam, o povo da internet cada vez mais associa seus passeios na rede com a necessidade de estar junto. Esse fato relativiza as críticas morais que bradam ameaçadores avisos anunciando que o mundo estaria perdido, pois a www -  World Wide Web – seria uma teia perigosíssima que estaria aprisionando nossa pobre juventude, em um isolacionismo narcisista e emburrecedor.
Essa notícia chega ao mesmo tempo em que o Papa se precipita em condenar um aplicativo para smart-phones, através do qual o fiel antenado se confessaria on line, sem a necessidade de se ajoelhar na madeira dura de um confessionário escurecido por muitos pecados ali penitenciados. Ao menos dessa vez, ufa!, o Papa mostrou que “tá ligado”, pois a web não substitui a presença física.

Na mesma vertente, podemos falar da repetitiva pergunta se é possível fazer análise por skype, ou serviço semelhante, sem ter que se preocupar com o terrível trânsito das grandes cidades, bem como se garantir em ter seu analista à mão, ou melhor, na tela, entre um mergulho e outro, em uma ilha paradisíaca, do outro lado do mundo.
Não dá. Há um quê na presença física que é insubstituível. E se dizemos “um quê” é exatamente pelo fato de não podermos precisar o que é isso da presença física que não sabemos traduzir em nenhum idioma e por nenhum meio, razão pela qual não a podemos substituir, pois, como celebrou Michel Foucault: “a palavra é a morte da coisa”; se falamos de algo, substituímos o algo pela palavra e não precisamos mais dele.
Em um mundo que quebrou os paradigmas cartesianos de espaço e tempo, jogando-nos no furacão do ilimitado sem fronteiras, não há nada a estranhar na necessidade da presença física do outro, do corpo do outro, do seu enigma, do cheiro, cor, som, movimento, textura, olhar, que não sabemos traduzir em bytes.

Esse enigma do outro é o remédio para a angústia tão atual, por nos termos visto transformar em habitantes de lugar nenhum.
Seis mil moças e moços geeks se acotovelaram por uma semana, em São Paulo, em uma festa chamada Campus Party. Seis mil!, em um pavilhão de exposições. É tão importante estarem juntos, que um nipo-brasileiro, morando ao lado do local da festa, trocou o conforto de seu quarto, por uma tendinha de campanha, verdadeiro elogio do desconforto.
A presença do outro nos remete ao mais essencial de nós mesmos. Se fôssemos honestos, parodiando Vinícius, jamais diríamos expressões do gênero: “no meu íntimo”. E isso porque o que nos escapa é exatamente o nosso íntimo. Diríamos, melhor, com Lacan: “no meu êxtimo”, sim, porque o meu íntimo me é tão estranho – quem já passou por uma análise sabe bem o que estou descrevendo – que melhor chamá-lo de êxtimo, clara alusão ao estranho e ao externo de si mesmo, que habita cada um.

Podemos nos livrar de muita coisa na vida, mas não da gente mesmo, em especial desse ponto íntimo desconhecido, promotor de nossas paixões, essa força estranha vivida na sensação do “mais forte que eu”. A presença física do amigo, do amado, do familiar, do próximo, nos reconecta com esse ponto fundamental, âncora de nossas existências, ponto transcendente de nossa imanência, se quisermos nos valer do discurso da Academia.
Nesse mundo de aparente tudo pode, e de em tudo estou, não por isso devemos nos assustar que ao lado do aumento dos acessos aos meios virtuais, vejamos crescer em paralelo os lugares de encontro físico, sejam eles campus parties, igrejas, consultórios, bares, cruzeiros. Os motivos são variados e o que neles se realiza, também, mas a necessidade é uma só: estar junto. Na era da pós-modernidade, onde o laço social das identificações é predominantemente horizontal, nos damos conta que o principal afeto, o mais fundamental afeto, é o da amizade.

Cada pessoa precisa de alguém que o ajude a chamar o seu êxtimo, de meu íntimo.

(artigo publicado na revista Psique nº 63, março 2011)



segunda-feira, 21 de março de 2011

O chato e o poeta

Jorge Forbes
-Artigo publicado em Psique Ciência e Vida-


Freud sempre se preocupou com coisas simples, característica dos gênios: achar o novo no que todo mundo vê, mas que não enxerga. Entre suas simplicidades, ele escreveu dois artigos em 1908 que sempre me chamaram a atenção pelo tema que abordam e que assim eu resumiria: por que tem tanta gente chata no mundo, aquela que começa a contar um caso e já vai dando sono, e tem gente interessante, que contando a mesma história nos desperta e interessa? Os dois textos são complementares, chamam-se: A Novela Familiar do Neurótico (Romances Familiares) e O Poeta e o Fantasiar (Escritores Criativos). Bastam os títulos para termos uma idéia da anteposição entre o neurótico e o poeta, para o vienense. Freud se pergunta o que diferenciaria o poeta – no sentido geral daquele que cria e não só o que compõe versos – do homem comum, genericamente, o neurótico. Seriam os temas que escolheriam para tratar que marcariam a diferença entre atrativos e desinteressantes? Um só falaria de coisas importantes e universais e o outro de sua vidinha? A resposta é não, mesmo porque estamos sempre contando a mesma história, ou melhor, tentando completar uma história esburacada, a nossa. O que os diferencia é o tratamento dado ao texto. Um, o neurótico, é invejoso de sua história, ela é só sua: o interlocutor tem que entendê-la tal qual, nos mínimos detalhes, arriscando inclusive ter que responder a uma sabatina para provar a boa atenção. O que ele teme é que vejamos suas fantasias pessoais naquilo que nos diz.   “Sentiríamos repulsa, ou permaneceríamos indiferentes ao tomar conhecimento de tais fantasias”, escreve o psicanalista.

O escritor criativo, por sua vez, “quando nos apresenta suas peças, ou nos relata o que julgamos ser seus próprios devaneios, sentimos um grande prazer, provavelmente originário da confluência de muitas fontes.” Freud conclui da seguinte maneira sua reflexão sobre o efeito que um texto interessante nos causa: “A satisfação ... talvez seja devida à possibilidade que o escritor nos oferece de, dali em diante, nos deleitarmos com nossos próprios devaneios, sem auto-acusações ou vergonha.”  Sabido o que diferencia um relato do outro, fica a pergunta de como consegui-lo. Partindo da questão da auto-acusação, analisemos. A primeira idéia, a mais banal – e equivocada – seria dizer que o poeta, sempre no amplo sentido, é um desaforado, um sem-vergonha. Nada disso. Melhor será notar que o poeta está mais livre do peso da expectativa do outro sobre ele, que um homem comum. Ele não fica tentando controlar como o outro vai entender o que ele diz; seria até engraçado imaginar a cena de um escritor que tentasse ao mesmo tempo escrever e impor como deveria ser interpretado.

O poeta não teme o mal-entendido porque aprendeu que ele não é um erro, é estrutural da espécie humana, como demonstrou Lacan. E se a segurança não vem do “o que o outro vai pensar de mim”, de onde ela vem? Exatamente da certeza constitutiva do mal-entendido que o faz trocar o julgamento do outro, frente ao qual somos invariavelmente culpados, por uma responsabilidade singular, que o leva a criar histórias que recobrem frouxamente o espaço do sem palavra. ´Poeta´ vem do termo ´poiesis´, justamente: criar, inventar, fazer.  Por uma história de um neurótico, ninguém passa, só assiste; por uma história de poeta, muitas outras histórias passam. Com sua posição de responsabilidade ética, e por sua estética aberta, generosa, o poeta faz com que nós também nos livremos das auto-acusações acachapantes e nos arrisquemos a inventar soluções mais singulares a nossos desejos Deixo para comentar futuramente um terceiro tipo de texto, o psicótico. Seria, falando brevemente, aquele escrito sem pé nem cabeça, do qual só se depreende ruído de palavras e nenhum efeito de sentido. Adianto que não se deve confundir texto psicótico, com o quadro psicopatológico. Escrito psicótico não é aquele escrito por um psicótico.  E, para finalizar, uma lembrança. Com facilidade podemos extrapolar o que comentamos sobre os textos, para os relatos das pessoas em geral.
Quem diria que, além de nos explicar, Freud deu dicas para um mundo menos chato?!

 

domingo, 6 de março de 2011

Ecce Homo


Artigo publicado na revista Psique nº 62 – fevereiro de 2011
Jorge Forbes

Não se fazem mais homens como antigamente”, reclama a velha senhora na soleira de sua porta, ao ver chegar o amigo da sua neta, encostando o carro. Arrumado demais, combinado demais, manso demais, indeciso demais, enfim – ela não quer confessar, mas caraminhola baixinho – o moço lhe parece feminino demais. A velha senhora tem alguma razão em observar que os homens, hoje, não são feitos da mesma maneira da qual ela estava habituada. Intuitivamente, ela nota – mesmo que não aceite – que a identidade humana é maleável, que muda conforme o tempo, abraçando o relevo da paisagem de sua época.Estamos assistindo a uma mudança de um período no qual o laço social que era vertical, gerando estruturas piramidais – o que provocava o estabelecimento de relações hierárquicas e padronizadas – passa a uma nova situação, na qual as relações humanas são horizontais e múltiplas, em tudo, muito diferentes dos modelos estáveis anteriores. No que toca à identidade masculina, ela passou de uma inflexibilidade poderosa, coerente com a verticalidade disciplinar do mundo de ontem, para uma participação interativa flexível, exigência do tempo presente. Traduzindo em miúdos: um homem era visto, caricaturado e admirado como alguém forte e fi rme em suas decisões – sem frescuras, sem dúvidas, sem titubeios – inflexível em sua vontade pétrea, como se elogiava barrocamente. Agora, nesses novos tempos, mais importante que dar ordens é convencer e seduzir; melhor que ser sempre igual, é mostrar-se criativo, respondendo diferentemente, conforme o aspecto de cada situação. Para as novas exigências, a carapaça do típico macho envelheceu, se despregou do seu corpo, caiu, e ele se vê tão perdido quanto cobra trocando de pele, ou siri que ficou nu e tem medo de ser catado. Reage atordoado procurando novas formas de ser e aparecer que lhe devolvam a segurança perdida; hipertrofia os traços machistas em academias fabricantes de abdomens tanquinhos, ao mesmo tempo em que vai perdendo a vergonha de confessar seu interesse no melhor creme, na cirurgia plástica, na mais atraente e chocante combinação de roupa. Pobres homens, a pós-modernidade não lhes é em nada tranquila. Enquanto as mulheres nadam de braçadas, pois o detalhe, a singularidade, o inusitado – características próprias à horizontalidade despadronizada – são a sua praia, os homens sofrem, se angustiam, por se verem sem a bússola do dever bem definido que lhes orientava tão corretamente e, tanto quanto aquela velha senhora, também desconfiam de sua própria sexualidade. Buscam os mais diversos consolos, alguns bem engraçados e paradoxais, como os grupos do Bolinha: confrarias das mais diversas, mais comuns as de vinho e as de comida, que, sob o manto disfarçador do refinamento do gosto, escondem a mais básica vontade de perguntarem uns para os outros como cada qual está se virando diante dessa verdadeira revolução. Isso, quando não contratam treinamentos supostamente disciplinadores e eficientes de tropas de elite, que tentam loucamente instalar em suas empresas, onde gostam de se travestir em generais incontestados, fazendo que os funcionários incomodados “peçam para sair”, tal como aprenderam naquele filme de sucesso. Pouco a pouco, ficará claro para a maioria que a masculinidade não se baseia em nenhum grupo de iguais – sejam eles confrarias ou exércitos –, mas, tudo ao contrário, na possibilidade de suportar a expectativa da diferença, aquela representada pelo enigma de uma mulher frente a um homem. De nada vai lhe adiantar querer calá-la – ou calá-lo, o enigma – com alguma resposta pronta do gênero de bolsas ou perfumes de marcas supostamente exclusivas – mas em algo tão singelo, quão difícil: sabendo fazê-la rir, sonhar, se surpreender. Ecce Homo.



quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

"Estranhos Desejos"


cena do filme "Modigliani"

Artigo publicado na revista Isto É Platinum, out/nov 2008.
Jorge Forbes
O bom senso, que normalmente pensa mal, associa a compra boa e feliz a quando alguém adquire o que lhe é necessário, em especial, se pertencer à trinca das necessidades humanas fundamentais: saúde, educação e moradia. Essa fórmula do politicamente correto funciona ao nível da necessidade, mas nem sempre ao nível do desejo. Desejar é ter um desejo sempre de outra coisa, afirmava Jacques Lacan. Os exemplos chocam: para terror da patroa, sua cozinheira comprou uma boneca de presente de natal para sua filha, empenhando a própria bicicleta. Para desespero da esposa, seu marido pagou cinqüenta mil dólares no carrinho de brinquedo que faltava à sua coleção. Para desconsolo da viúva, sua filha gastou todo o 13º salário, em uma viagem para uma ilha semi-selvagem. Afirmar que esses fatos só ocorrem em um sistema de capitalismo selvagem, corruptor de mentes fracas, hipnotizador perverso e aliciador do consumismo suicida, é acreditar em utopias. As condições de escolha de um objeto, como também de uma pessoa são sempre muito estranhas aos olhos dos outros; é o que fez Fernando Pessoa escrever que todas as cartas de amor são ridículas.
Os tempos de hoje, da globalização, são ainda mais propícios às expressões singulares de cada pessoa, aumentando a taxa de estranheza das escolhas. Isso porque estamos em um tempo no qual não há padrões fixos do que se deve fazer, ou do como se pode ter prazer corretamente. Aumenta muito a responsabilidade de cada um de com quem está, em que lugar, e com o que. Está com os dias contados o exibicionismo do objeto de luxo para mostrar poder e exclusividade, a questão não é mais de impressionar o outro, mas de, como um artista, fazer sua opção subjetiva, e incluí-la no mundo.
Felicidade não tem preço, diz a sabedoria popular, não no sentido de ser muito cara, mas de que não é “precificável”, de que nunca se acha o justo valor. Os objetos da pura necessidade, espera-se que sejam gratuitos, pois se nos puseram nesse mundo, que nos cuidem, ensinem e abriguem; já os objetos de desejo, que cada um responda.

 

Emprestando conseqüência- quando Freud não explica II- parte

Optei por postar o link, pois o texto apresenta 'desenhos/gráficos" que não é possível a postagem aqui.

http://www.ebp.org.br/biblioteca/pdf_biblioteca/Jorge_Forbes_Emprestando_%20Consequencia.pdf

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Emprestando Conseqüência-quando Freud não explica


Emprestando Conseqüência-quando Freud não explica
Jorge Forbes

Há duas clínicas no ensino de Jacques Lacan:

I- Uma primeira, a do significante, a que se baseia na estrutura do inconsciente como uma linguagem, e uma segunda, a clínica do gozo, ou a da identificação ao sintoma, que trata dos fenômenos que ultrapassam a captura da singularidade do sujeito pela palavra. Este é o grande debate, no momento, na Associação Mundial de Psicanálise. É importante por duas razões:
Primeira, por colocar em relevo um Lacan do significante em contraste a um outro Lacan, mais além da palavra em associação livre e, segunda, é conveniente para nos apercebermos que a primeira clínica é coerente e adequada ao sujeito da era industrial, aquele marcado pelas identificações verticais (pai, pátria, moeda, fronteiras), enquanto a segunda clínica prepara o terreno para o tratamento dos novos sintomas do sujeito da era da globalização, que sofre um desvario do seu gozo, decorrente da quebra dos ideais.
É, portanto, um temo novo, atual e complexo, podendo ser abordado por diversos vieses.
Escolhi um, que propus em título deste artigo: "Emprestando conseqüência". Proponho pensar que se na primeira clínica o analista empresta sentido ao que diz o analisando, na segunda, o que ele faz é emprestar conseqüência. Ao emprestar sentido, cada fala do analisando remete a outra, e mais outra, e assim por diante. Se, por um lado, isto tem um efeito revelador bastante conhecido, por outro, pode dar impressão à pessoa, de que o que ela diz não tem  muita importância ou conseqüência – como quero destacar – pois ela espera que o que importa é o que ainda não foi dito. Assim, podemos encontrar exemplos de falas bastante duras, de julgamentos pesados, que contam com esse efeito derrisório, como se o que valesse mesmo fosse o que ainda estivesse por vir, algo ainda não falado.
Para ilustrar, transcrevo algumas intervenções atribuídas a Lacan:
O paciente declara:
– Oh lá, como eu sou burro.
Lacan:
Não é porque o senhor o diz que não seja verdade. (1)
Ou ainda:
O senhor deve se dar conta que se o senhor pensa que os outros pensam que o senhor pensa mal, é talvez simplesmente porque o senhor pensa mal. (2)
Outro caso:
O senhor talvez imagine que não sou tão inteligente quanto o senhor (fala o paciente).
Quem lhe diz o contrário ? (3)
Sempre na mesma linha :
O paciente chega, deita e passados alguns instantes :
Não tenho nada a dizer...
Reposta :
Ok, isso acontece ! Até amanhã, caro. (4)
Em todas essas passagens da clínica destacamos o mesmo elemento: a conseqüência do que se diz.

II- O quadro da primeira e da segunda clínica  ( próxima postagem)

Jorge Forbes é psicanalista e médico psiquiatra. É Analista Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (A.M.E.), Preside o IPLA – Instituto da Psicanálise Lacaniana e dirige a Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano da USP.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

"O afeto no tempo"

Divã -Consultório de Freud-

E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.
A certos momentos do dia recordo tudo isso e apavoro-me,
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
Desta estrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,
Desta turbulência tranqüila de sensações desencontradas,
Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os prazeres,
Desta saciedade antecipada na asa de todas as chávenas,
Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.
Não sei se a vida é pouco ou demais para mim."
Fernando Pessoa
Tratando do Gozo no Tempo, notamos que "o  homem moderno vive uma espécie de antinomia com o tempo, uma espécie de disputa em que as horas são inimigas e ao mesmo tempo preciosas" (Corrêa, 2001). Com isso o tempo perde sua suposta condição de objetividade, tornando-se um ponto de incidência de suas reações afetivas. O tempo que passa, o difícil dia que se finda, a marca atenuada ou culposa do passado, a inexorável incisão do presente, ou o campo de incertezas do futuro, são marcas de uma adjetivação clara em que falar do tempo sugere sempre uma conotação de bom, mau, produtivo, triste, alegre. O afeto incide sobre o tempo vivido transformando-o e tornando-o um atributo (com qualidades que não pertencem à sua essência). Ao tempo assim vivido, deve-se acrescentar a questão de que estados diferentes de afeto são responsáveis pela percepção alterada do tempo. O saudoso professor Lopez Ibor (1969) em feliz sentença definiu a angústia como uma concentração de tempo. Palavras, ocorrências, dificuldades a resolver, o trabalho e afetos diferentes, muitas vezes coisas toleráveis a seu tempo, se reúnem em um espaço de tempo impossível à consciência. De outra forma, a relação entre afeto e percepção subjetiva do tempo é uma vivência comum a todos nós. A lentidão do tempo de sofrimento e de espera e o tédio imobilizador do relógio fazem contraponto aos momentos felizes, ao encontro com o prazer quando tudo passa tão depressa. A literatura tem se mostrado extremamente rica na apresentação das variações do sentir a espera marcada pelo desejo, o ato de consumo e a nostalgia da conclusão do ato ou até uma espécie de luto pela perda do desejo saciado. Na verdade, é como Lacan ensinou em 1962. O afeto está sempre ligado àquilo que nos constitui como sujeitos desejantes em nossa relação com o outro semelhante, com o grande Outro, como lugar do significante e da representação do objeto a. A manifestação literária do afeto tocando todos estes pontos é como se tocasse o Real, que o poeta toma como se fosse a própria vida. Esta é a matéria-prima fundamental da poesia.
"O afeto no tempo"
Carlos Pinto Corrêa
Trabalho apresentado na Jornada Comemorativa dos 15 anos do CPS. I Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia.
Texto na Integra: