terça-feira, 14 de junho de 2011

Não perca tempo

Não perca tempo
Maria Rita Kehl*

Jean Cocteau em Ópio: “Viver é uma queda horizontal” (...) Tudo o que a gente faz na vida, até o amor, a gente faz no trem expresso que caminha para a morte”. Saber disso o tempo todo seria insuportável. Precisamos ignorar periodicamente a morte para conseguirmos viver. O capitalismo coloca um arsenal de mercadorias à nossa disposição e retira grande parte de seus lucros desse truque: iludir civilizações inteiras sobre a idéia do fim. A tecnologia nos promete a realização imediata de todos os desejos: nós quase não acreditamos na morte como destino da carne. A tecnologia nos promete o horror da vida eterna já, e aqui mesmo. Vivemos a todo o vapor. Não a velocidade da “queda horizontal” (inevitável!) a que se refere Cocteau. Vivemos na velocidade de uma fuga. As duas funções básicas do “milagre” tecnológico são ilusórias. Encurtar necessário para as operações e tarefas da vida: a isso chamamos conforto.  Adiar a possibilidade da morte, e afastar seu espetáculo trágico do nosso convívio: proporcionar-nos um cotidiano alienado de seu próprio fim: a isso chamamos segurança.

Claro que o preço que se paga pelos truques é o trabalho. Em troca da ilusão de que o tempo é eterno, é algo que se espiche e se acumule segundo a mesma lógica da acumulação do capital, abrimos mão do tempo da experiência, do tempo “ocioso” e às vezes angustiante da subjetividade, da poesia. O tempo presente passa a só ter valor em função de um futuro idealizado, garantido, “eterno”: o que nos faz “correr para o futuro” ajustados ao tempo da produção.  O tempo do neurótico nunca é o presente. O neurótico não pode gozar com sua experiência.(...) (...) A psicanálise, a princípio, parece um desmancha-prazeres. Acorda o sujeito de seu sonho de zumbi (ou não: quem procura um analista já foi acordado, de uma maneira ou de outra, por algum sofrimento que não pode evitar) para lhe acenar com limites, morte, castração, perdas. Na sociedade do consumo e do narcisismo, esta parece uma prática para otários. Mas esta prática aponta para a rebeldia. Reinserido na sua história e confrontado com a morte, o analisado recupera a liberdade para viver o presente. Os fetiches da tecnologia  são proteções contra o medo da castração

A proposta da psicanálise é outra. Que se enfrente este medo; livre da proteção dos fetiches a vida se abre para a experiência. Por exemplo, para a experiência estética. Por exemplo, para o amor.
   
 Maria Rita Kehl é psicanalista é autora de diversos livros: entre eles “Deslocamentos do feminino”,“O ressentimento”,“Sobre ética e psicanálise .Maria Rita Kehl escreveu o texto em agosto de 1994
 na  Folha de São Paulo.
O texto completo procurar em www.uol.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário