domingo, 3 de julho de 2011

O divã além da porta

"Vocês ponham o divã virado para a porta.
Assim, se o paciente quiser sair sem olhar para vocês, ele simplesmente se levanta, abre a porta e vai embora"

 Jorge Forbes

Eu estava no começo de meus estudos de psicanálise, mais ou menos na metade do meu curso de medicina. Quem me ensinava a posição correta no divã da sala de análise era um consagrado psicanalista da sociedade local, terno cinza, camisa branca, cara sisuda de conteúdo, com riso comedido. E ele não ficava aí: a esta pérola da posição do móvel se somavam outros ordenamentos práticos para o correto “setting terapêutico”, como assim era chamado. Preferencialmente não se devia estender a mão ao paciente, o menor contato físico poderia ser desencadeador de fantasias ancestrais perigosíssimas ao tratamento. Por razão semelhante, nada de fotografias na sua sala. Imagine um psicanalista que mostrasse sua família ou seus amigos, quão perturbador poderia ser.  Melhor mesmo é que nem livros tivesse, para não revelar seu gosto literário, ou sua filiação científica. Vestir-se deveria ser sempre o mais discreto possível: homens de gravata, mulheres de saia abaixo do joelho, sempre de cores pálidas. Não atender, ah, isso era fundamental, não atender pessoas da mesma família, para que a transferência não se misturasse nas intricadas redes afetivo-familiares. Aliás, era melhor também não atender ninguém que morasse nas cercanias do consultório ou da casa do analista, pois já imaginou como seria horroroso, disruptivo mesmo, um paciente ver seu analista de bermudas em uma manhã de domingo comprando um jornal na banca da esquina?

Se para ser analista fosse necessário cumprir estas normas que para mim, apesar da pouca idade, me pareciam compor um forte bestialógico, eu ia ter que escolher outra coisa para fazer na vida. Minha crítica não recaía só sobre o cumprimento bobo dessa cartilha, mas especialmente sobre a ideologia que a sustentava. É fácil perceber que tudo está ali pensado para não “perturbar” o paciente. Ora, ora, uma análise foi feita para fazer dormir, ou para acordar? Assim descrita, ela serviria para não incomodar o paciente em seu sintoma, em seu sono irresponsável e inconsciente. Continuando, percebe-se que havia uma tentativa de transformar o analista, sua pessoa, seu corpo, em algo diáfano, invisível, o mais perto possível da famosa “tela em branco” sobre a qual o paciente projetaria suas angústias, na certeza de não vê-las misturadas com a pessoa que o atendia. Triste e capenga visão do que seja a intimidade de uma pessoa: a lombada de seus livros? Suas fotos? Seus amigos? Sua roupa? Não, nada disso, esses traços podem ser indicações, alusões – e quantas vezes falsas! – mas não dizem do cerne de uma pessoa. Aliás, aí está um dos desafios da psicanálise, o de levar a perceber que todas essas características são apoios provisórios da identidade que um analisando deve ir questionando, um a um, em seu trabalho analítico, desembaraçando-se do peso de suas identificações, para poder alcançar o mais íntimo do seu ser, algo de uma estranheza familiar, como diria Freud.

Já estava pronto para fazer outra coisa na vida, como escrevi - pensei em ser gastroenterologista, pois percebia que a maioria das queixas desse sistema se relacionava mais aos sapos comidos, que a pratos mal preparados - quando me deparei na Livraria Francesa da Rua Barão de Itapetininga, em São Paulo, com um livro de um tal de Lacan, que alguém me havia assoprado muito levemente, só dizendo que tinha ouvido falar que ele vinha afirmando coisas novas na psicanálise, lá pela Paris. Abri seu livro com o título provocador de “Écrits”, como se abre livros ao léu nas estantes das livrarias e me deparei com uma frase impactante, no capítulo intitulado “A direção do Tratamento”: “O analista faria melhor situando-se em sua falta-a-ser do que em seu ser”. Claro que naquele momento não entendi muita coisa desse quase aforismo, mas entendi o suficiente para me convencer que havia uma outra psicanálise possível, diferente daquela cheia de rituais de isolamento obsessivos, e que eu poderia continuar em meu desejo de ser psicanalista. Apostei: literalmente embarquei e fui conhecer de perto esse verdadeiro acontecimento Lacan. Não me arrependi, continuo a viagem na certeza sempre mais clara que uma intimidade não se apreende nem nos detalhes de decoração, nem nas vestimentas, mas na ética de se responsabilizar, ou seja, de responder por esse desejo que sempre nos interroga. E que viva a Psicanálise, além de qualquer standard.

artigo publicado na revista Psique nº 64, abril 2011

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