domingo, 3 de julho de 2011

O divã além da porta

"Vocês ponham o divã virado para a porta.
Assim, se o paciente quiser sair sem olhar para vocês, ele simplesmente se levanta, abre a porta e vai embora"

 Jorge Forbes

Eu estava no começo de meus estudos de psicanálise, mais ou menos na metade do meu curso de medicina. Quem me ensinava a posição correta no divã da sala de análise era um consagrado psicanalista da sociedade local, terno cinza, camisa branca, cara sisuda de conteúdo, com riso comedido. E ele não ficava aí: a esta pérola da posição do móvel se somavam outros ordenamentos práticos para o correto “setting terapêutico”, como assim era chamado. Preferencialmente não se devia estender a mão ao paciente, o menor contato físico poderia ser desencadeador de fantasias ancestrais perigosíssimas ao tratamento. Por razão semelhante, nada de fotografias na sua sala. Imagine um psicanalista que mostrasse sua família ou seus amigos, quão perturbador poderia ser.  Melhor mesmo é que nem livros tivesse, para não revelar seu gosto literário, ou sua filiação científica. Vestir-se deveria ser sempre o mais discreto possível: homens de gravata, mulheres de saia abaixo do joelho, sempre de cores pálidas. Não atender, ah, isso era fundamental, não atender pessoas da mesma família, para que a transferência não se misturasse nas intricadas redes afetivo-familiares. Aliás, era melhor também não atender ninguém que morasse nas cercanias do consultório ou da casa do analista, pois já imaginou como seria horroroso, disruptivo mesmo, um paciente ver seu analista de bermudas em uma manhã de domingo comprando um jornal na banca da esquina?

Se para ser analista fosse necessário cumprir estas normas que para mim, apesar da pouca idade, me pareciam compor um forte bestialógico, eu ia ter que escolher outra coisa para fazer na vida. Minha crítica não recaía só sobre o cumprimento bobo dessa cartilha, mas especialmente sobre a ideologia que a sustentava. É fácil perceber que tudo está ali pensado para não “perturbar” o paciente. Ora, ora, uma análise foi feita para fazer dormir, ou para acordar? Assim descrita, ela serviria para não incomodar o paciente em seu sintoma, em seu sono irresponsável e inconsciente. Continuando, percebe-se que havia uma tentativa de transformar o analista, sua pessoa, seu corpo, em algo diáfano, invisível, o mais perto possível da famosa “tela em branco” sobre a qual o paciente projetaria suas angústias, na certeza de não vê-las misturadas com a pessoa que o atendia. Triste e capenga visão do que seja a intimidade de uma pessoa: a lombada de seus livros? Suas fotos? Seus amigos? Sua roupa? Não, nada disso, esses traços podem ser indicações, alusões – e quantas vezes falsas! – mas não dizem do cerne de uma pessoa. Aliás, aí está um dos desafios da psicanálise, o de levar a perceber que todas essas características são apoios provisórios da identidade que um analisando deve ir questionando, um a um, em seu trabalho analítico, desembaraçando-se do peso de suas identificações, para poder alcançar o mais íntimo do seu ser, algo de uma estranheza familiar, como diria Freud.

Já estava pronto para fazer outra coisa na vida, como escrevi - pensei em ser gastroenterologista, pois percebia que a maioria das queixas desse sistema se relacionava mais aos sapos comidos, que a pratos mal preparados - quando me deparei na Livraria Francesa da Rua Barão de Itapetininga, em São Paulo, com um livro de um tal de Lacan, que alguém me havia assoprado muito levemente, só dizendo que tinha ouvido falar que ele vinha afirmando coisas novas na psicanálise, lá pela Paris. Abri seu livro com o título provocador de “Écrits”, como se abre livros ao léu nas estantes das livrarias e me deparei com uma frase impactante, no capítulo intitulado “A direção do Tratamento”: “O analista faria melhor situando-se em sua falta-a-ser do que em seu ser”. Claro que naquele momento não entendi muita coisa desse quase aforismo, mas entendi o suficiente para me convencer que havia uma outra psicanálise possível, diferente daquela cheia de rituais de isolamento obsessivos, e que eu poderia continuar em meu desejo de ser psicanalista. Apostei: literalmente embarquei e fui conhecer de perto esse verdadeiro acontecimento Lacan. Não me arrependi, continuo a viagem na certeza sempre mais clara que uma intimidade não se apreende nem nos detalhes de decoração, nem nas vestimentas, mas na ética de se responsabilizar, ou seja, de responder por esse desejo que sempre nos interroga. E que viva a Psicanálise, além de qualquer standard.

artigo publicado na revista Psique nº 64, abril 2011

terça-feira, 14 de junho de 2011

Não perca tempo

Não perca tempo
Maria Rita Kehl*

Jean Cocteau em Ópio: “Viver é uma queda horizontal” (...) Tudo o que a gente faz na vida, até o amor, a gente faz no trem expresso que caminha para a morte”. Saber disso o tempo todo seria insuportável. Precisamos ignorar periodicamente a morte para conseguirmos viver. O capitalismo coloca um arsenal de mercadorias à nossa disposição e retira grande parte de seus lucros desse truque: iludir civilizações inteiras sobre a idéia do fim. A tecnologia nos promete a realização imediata de todos os desejos: nós quase não acreditamos na morte como destino da carne. A tecnologia nos promete o horror da vida eterna já, e aqui mesmo. Vivemos a todo o vapor. Não a velocidade da “queda horizontal” (inevitável!) a que se refere Cocteau. Vivemos na velocidade de uma fuga. As duas funções básicas do “milagre” tecnológico são ilusórias. Encurtar necessário para as operações e tarefas da vida: a isso chamamos conforto.  Adiar a possibilidade da morte, e afastar seu espetáculo trágico do nosso convívio: proporcionar-nos um cotidiano alienado de seu próprio fim: a isso chamamos segurança.

Claro que o preço que se paga pelos truques é o trabalho. Em troca da ilusão de que o tempo é eterno, é algo que se espiche e se acumule segundo a mesma lógica da acumulação do capital, abrimos mão do tempo da experiência, do tempo “ocioso” e às vezes angustiante da subjetividade, da poesia. O tempo presente passa a só ter valor em função de um futuro idealizado, garantido, “eterno”: o que nos faz “correr para o futuro” ajustados ao tempo da produção.  O tempo do neurótico nunca é o presente. O neurótico não pode gozar com sua experiência.(...) (...) A psicanálise, a princípio, parece um desmancha-prazeres. Acorda o sujeito de seu sonho de zumbi (ou não: quem procura um analista já foi acordado, de uma maneira ou de outra, por algum sofrimento que não pode evitar) para lhe acenar com limites, morte, castração, perdas. Na sociedade do consumo e do narcisismo, esta parece uma prática para otários. Mas esta prática aponta para a rebeldia. Reinserido na sua história e confrontado com a morte, o analisado recupera a liberdade para viver o presente. Os fetiches da tecnologia  são proteções contra o medo da castração

A proposta da psicanálise é outra. Que se enfrente este medo; livre da proteção dos fetiches a vida se abre para a experiência. Por exemplo, para a experiência estética. Por exemplo, para o amor.
   
 Maria Rita Kehl é psicanalista é autora de diversos livros: entre eles “Deslocamentos do feminino”,“O ressentimento”,“Sobre ética e psicanálise .Maria Rita Kehl escreveu o texto em agosto de 1994
 na  Folha de São Paulo.
O texto completo procurar em www.uol.com.br

sexta-feira, 20 de maio de 2011

"O mundo é meu lugar"

O mundo é meu lugar

Jorge Forbes

O prazer tem algo de cafona:
de comprar jornal de domingo de
chinelo de couro;
de andar de camiseta de
umbigo de fora;
de declarar amor dizendo :
eu te escolhi, tu me escolheu ?;
de pôr cadeira na calçada
para papear, para ver o mundo
que passa, para calçadar
o sonho, que a rua
é minha praça,
que o mundo é
meu lugar.
Cafonas do mundo
me aceitem,
tô cansado de impostar
.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Jacques Lacan, o analista do futuro


Jacques Lacan,
por Jorge Forbes
É curioso falar de um analista do futuro quando nos acostumamos a pensar em psicanalistas do passado. A idéia que fazer análise seja remexer no velho baú da infância contribuiu para montarmos a caricatura do psicanalista semelhante à antiga imagem do guarda-livros, uma pessoa empoeirada e opaca.
Lacan é um clássico, no sentido que chamamos de clássico aquilo que resiste ao tempo, por não se deixar apreender em qualquer interpretação classificatória. Sempre há mais Lacan do que aquilo que se pode apreender, da mesma maneira que há sempre mais Sófocles que qualquer representação de Édipo Rei, ou mais Shakespeare , ou mais Van Gogh, ou mais Drummond, ou mais Tarsila. Por isso essas pessoas não morrem, porque não há túmulo que as contenha, não há palavra que as explique. Se Foucault tinha razão ao dizer que a palavra é a morte da coisa, os clássicos são mais coisa que palavra, e por isso falamos deles sem esgotá-los. Lacan evitou que a psicanálise se transformasse em método tolo de adaptação social, armadilha a qual, infelizmente, alguns pós-freudianos não conseguiram escapar. Ele pôs o futuro na psicanálise: demonstrou que qualquer tentativa de explicação de si mesmo acaba, inevitavelmente, em um ponto duro, real, resistente – como em física fala-se em resistência dos materiais – a qualquer nomeação, semelhante ao “que será que será que nunca tem nome nem nunca terá”, cantado por Chico e Milton.
Na impossibilidade de se garantir através de uma explicação causalista e reducionista do seu passado, o analisando é levado, na orientação lacaniana, a inventar um futuro para si próprio, sem nenhuma outra razão além daquela do seu desejo, posição nem sempre muito confortável, apesar de entusiasmante, pois trata-se de uma invenção sem garantia repartida, sem o beneplácito da aceitação grupal, seja de que grupo for. Atenção: que não se pense ou se confunda esta invenção do futuro, na lógica do desejo, com qualquer individualismo barato ou hedonismo de ocasião. A análise lacaniana parece a mais coerente com as conseqüências da globalização sobre as pessoas, com osujeito pós-moderno. Vivemos um momento de transição histórica do sujeito da era industrial para o da era da globalização. O sujeito industrial se caracterizou pelo privilégio do eixo vertical das identificações. É o que explica a organização piramidal da sociedade industrial, presente na família e nas corporações dessa época. Para entender esse sujeito, a estrutura do complexo de Édipo proposta por Freud mostrou toda a sua importância. O complexo de Édipo também é uma estrutura que privilegia o eixo vertical das identificações, haja visto o papel fundamental que o pai tem nesse modelo. Agora, quando entramos na globalização, quando o sujeito não mais se dedica a ser parte de um grande ideal – não há mais grandes ideais – quando a horizontalidade é mais importante que a verticalidade anterior, Lacan propõe que uma análise possa ser conduzida além do Édipo, além das significações consagradas no ideal paterno e de seus representantes. É a análise do futuro, de um sujeito de uma nova era. Estamos começando a desbravar esse caminho, seguindo as pistas deixadas por Lacan.
Três expressões eu poria em relevo, do seu legado: “conseqüência”, “responsabilidade” e “novo amor”.
Conseqüência porque contrariamente ao que possa parecer, palavras não são só palavras, não há nada a ser buscado além delas, e sim nelas, como os poetas que renovam o termo mais banal dando-lhe uma nova dimensão. O analista empresta conseqüência às palavras do analisando. Responsabilidade, não no sentido moral, mas no sentido ético. Lacan diferencia moral – usos e costumes – de ética, posição subjetiva. A psicanálise lacaniana ensina que não há como não se responsabilizar pelo acaso e pela surpresa. A pessoa não é só o que escolhe, voluntariamente livre, mas também o que lhe ocorre : “eu sou o meu acontecimento”. Novo Amor. A psicanálise, dizia Lacan, não foi capaz de inventar um novo pecado, uma nova perversão; talvez, fica a pergunta, seja capaz de inventar um novo amor que não seja voltado ao pai em última instância, mas que, sabendo dele se servir, possa ir além do chamado, em psicanálise, gozo fálico e captar algo do real feminino. Tanto a globalização, quanto a psicanálise de hoje, revelam que entramos em um novo momento, mais propício à essência feminina. Muito da epidemia depressiva de nossos dias fica esclarecida pela desorientação ocasionada pela perda da orientação masculina. Lacan previu estes acontecimentos e deixou os instrumentos para tratá-los : um analista do futuro.
Publicado em O Estado de São Paulo e em Opção Lacaniana: revista brasileira internacional de psicanálise. n.32, de dez.2001, p.52-53 São Paulo: Eolia.

sábado, 23 de abril de 2011

O Sonho Acabou, Viva o Sonho!

                                        Jorge Forbes                                           

Não se fazem mais rebeldes como antigamente. Acabaram os James Deans, os Jimi Hendrix, os Jacarés; as passeatas, as pichações dos muros, as palavras de ordem, as cartilhas do desalienado, os códigos secretos de nome e lugar. Não se sobe mais a Rua Augusta a 120 por hora, mesmo porque seria lento. E por que esse mundo não existe mais é que deixa tanta saudade; uma saudade orgulhosa de quem participou da famosa geração 68.

Ontem, era possível ser rebelde. Vivia-se uma época padronizada do ‘deve ser’. Para tudo havia um manual, uma bula que definia o bom procedimento. Como ter filho, como educar, como casar – com quem, com quantos anos -, como escolher uma profissão – desde que fosse médico, advogado ou engenheiro – como se aposentar, como morrer. Na família imperava o pai; no trabalho, o chefe; na sociedade, a pátria. A essa forma de organização do laço social, em torno a símbolos maiores e aglutinadores, dá-se o nome de organização vertical. A identidade se estruturava verticalmente. Nesse contexto, o caminho da rebeldia estava traçado: contestar os padrões estabelecidos. Daí surgia a sensação de liberdade com o seu riso tenso, sim, tenso, porque se sabia que o que referendava essa liberdade era a morte e ela muitas vezes ocorria. Ameaçava-se com a morte, de variados tipos, dos simbólicos ao real, a quem não obedecesse aos padrões; então, por dedução, morrer era o atestado maior por não ter obedecido aos temidos padrões. A morte era o troféu do rebelde, onde, finalmente, transformava-se em herói. Seu caixão era levado em procissão pela turma. Seus feitos transformados em memória gloriosa e, paradoxalmente, em novos padrões para falsos rebeldes, amantes da contestação pasteurizada, sem risco, que passavam a se vestir como, andar como, dirigir como, falar como o seu herói.

Hoje não é possível ser rebelde. Rebelde a quê? Não há mais um consenso coletivo contra o que lutar, não há grandes grupos fechados em uma bandeira comum, mas pequenas, porosas e flexíveis tribos. Não se pede coerência, acabou o “O que é isso companheiro?”, o tempo é da mistura, do ‘mundo mix’. Se antes a responsabilidade era coletiva frente a uma escolha comum, agora ela é subjetiva, cada um é responsável por suas diferentes escolhas. O lugar da morte também não é mais o mesmo. De ponto final que consagrava uma carreira, ela passa a ponto de partida. Logo, está afastada a morte real, só valem seus representantes alusivos. Os mais conhecidos são os esportes radicais, do tipo: na terra, escalar, no ar, paraglider, no mar, kitesurf. O sucesso desses esportes vem da necessidade não de ir além do limite, como fazia o rebelde, mas, ao contrário, de estabelecer um limite, de saber onde está a morte e de como lidar com ela. Esse verdadeiro exercício cria pontos de ancoragem, raízes, por isso, radicais. É enganoso pensar que a mocidade de hoje é inferior à de ontem. Que hoje, por não haver grandes mobilizações nas ruas, ou inflamados discursos em palanques improvisados, estariam todos perigosamente desinteressados. Esse julgamento vem de velhos conceitos. O mais interessante é descobrirmos as novas formas de organização do amor, ou seja, no acadêmico, do laço social, do “estar ligado”.

Os laços sociais passaram de verticais a horizontais. Porque não há mais padrões universais, falamos em sociedade de rede. E também, pela mesma razão, vivemos um renascimento cultural. A cultura se renova quando há necessidade de se reinventar o mundo; é o nosso caso. Que tal em vez de acharmos que os jovens estão perdidos por não se juntarem contra os governos corruptos - para dar um exemplo do que antes mobilizaria muitos - vermos que eles estão apontando para outros lugares e formas de governo; não nas capitais inventadas para isso, nem nas mãos de fantoches decadentes e obscenos. Não se muda mais a vida com grandes exemplos, ou grandes prisões, mas com detalhes; motivo de falarmos em epidemia. Para o bem e para o mal, as epidemias são transformadoras, em sua capacidade de tocar a cada um de um jeito. Se os jovens não dialogam mais, eles monologam; eles inventaram a capacidade de articular os monólogos - “monólogos articulados” - a causar arrepios nos iluministas. Um claro exemplo é a música eletrônica, não tem palavras, não tem um só sentido, mas faz muita gente estar ligada. O sonho acabou, viva o novo sonho!

Artigo publicado na Revista TRIP 163
fevereiro 2008

domingo, 17 de abril de 2011

A vida é honra

por  Jorge Forbes

Simon Howden / Freesite.net

Na mesma semana, dois fatos contrários. Enquanto festejávamos a moça que, visitando o túmulo do seu pai, avisa a polícia de um assassinato cometido pela própria polícia, somos confrontados ao moço que loucamente invade uma escola e mata mais de dez alunos, ferindo gravemente outros tantos, para ao final se suicidar.
A alegria que nos deu o gesto da moça desapareceu na enxurrada de sofrimento provocada pela morte das crianças na idade do sonho. Fica uma pergunta no ar de todas as mídias: Por que?
Por que ele fez isso, o que o motivou, com qual intenção, era psicótico, fiel de religiões bárbaras, possuído pelo demo, desorientado sexual, revoltado pela adoção, por que, por que? E toca-se a perscrutar seu passado, seus escritos, conversar com familiares, vizinhos e conhecidos, refazer seus percursos, tudo na tentativa de encontrar supostos elos lógicos que justifiquem o assassinato de tantas crianças. Pululam profetas do passado lutando levianamente pela audiência televisiva.
Cá entre nós - paremos um pouquinho - será que alguém seriamente pensa que existiria uma lógica que explicaria essa atrocidade? Uma determinação genética ou cultural assassina? Não me parece crível. O que me é mais convincente é que a sociedade, de tão assustada frente a seu próprio horror, tenta inventar respostas que justifiquem o injustificável, que a assegure que aquela pessoa é diferente de todas outras, enfim, que não tem nada a ver comigo, nem com você.
A presidente Dilma, no momento do ocorrido, declarou que o Brasil não estava acostumado a esse tipo de crime. É certo, não estava acostumado, mas, como se viu, não estava imune. Associamos essa modalidade criminosa mais à América do Norte e a alguns países da Europa, que nos antecederam em ocorrências. Vivemos uma era na qual, se não tomarmos cuidado, descambaremos para a banalização radical da vida. Longos amores já são desfeitos em curtos e-mails: - “Fui”. Pessoas que nos desagradam não merecem resposta, basta “deletar”, palavra nova que associa uma pessoa a uma letra: um toque e pronto, ela desaparece. Sim, sei que o abismo entre os exemplos é enorme, mas, insisto: que nome se dá a “matar” na gíria criminosa se não, “apagar”?
Para complicar ainda mais nosso estarrecimento, como não perceber a ânsia desses assassinos em quererem fazer de sua morte um acontecimento? Esse é um padrão que se repete em todos os casos: se tive uma vida deletável, terei uma morte memorável.
A solução não reside, por tudo isso, no aumento de segurança armada dos estabelecimentos públicos. Seria uma atitude que corresponde a uma visão muito reduzida do que nos ocorre. Pode acalmar, de imediato, angústias desesperadas, mas nem resvalará no problema que nos abate.
Voltemos à moça do cemitério e a seu gesto. Ela contrariou todas as ordens de salvaguarda pessoal que nos doutrinam nas delegacias e na mídia. – “Jamais responda a um atacante, não olhe para ele, abaixe a cabeça, entregue tudo para não entregar a vida, não fuja, fale docemente, chame de senhor, não defenda alguém que está sendo atacado, etc, etc.” A moça foi muito desobediente. Naquele cemitério vazio e afastado, ela, sozinha, homenageava seu pai morto. De repente um assassinato – e por policiais – na sua frente. Fugir, se amedrontar, se esconder em um túmulo vazio, como lhe ensinaram? Ao contrário, altivamente, cheia de orgulho humano, pois se trata muito mais de honra que de coragem, ela vai a um telefone público, liga para a polícia militar e descreve calmamente e em detalhes o que está presenciando. E ainda mais, ao ver a aproximação dos homens fardados é ela que toma a iniciativa de abordá-los e de inquiri-los sobre o que acabaram de fazer. Ela deve tê-los assustado, não por uma força maior que a deles, mas por agir em outro registro, aquele que lhe dizia que sim, é claro que ela podia fugir, mas viver não é sobreviver, salvar a pele não é salvar a vida, uma vida vai bem além da pele.
Imagine, caro leitor, uma sociedade composta de pessoas do tipo dessa moça, pessoas que não respondem às armas pelas armas, mas sim respondem às armas pelo constrangimento, que aposta que o pior assassino pode ser tocado em um ponto do constrangimento humano. Mesmo que difícil, não é utópico como o exemplo da moça o demonstra, e o primeiro passo é recuperarmos a noção que viver é muito mais que sobreviver e que não se vive, não se respira em uma sociedade de deletáveis.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

"Há um quê na presença física que é insubstituível"

Preciso de você

Cada pessoa precisa de alguém que o ajude a chamar o seu êxtimo, de meu íntimo 
Jorge Forbes

A jornalista me pergunta impressionada a razão de novas pesquisas constatarem que, contrariamente ao que muitos esperavam, o povo da internet cada vez mais associa seus passeios na rede com a necessidade de estar junto. Esse fato relativiza as críticas morais que bradam ameaçadores avisos anunciando que o mundo estaria perdido, pois a www -  World Wide Web – seria uma teia perigosíssima que estaria aprisionando nossa pobre juventude, em um isolacionismo narcisista e emburrecedor.
Essa notícia chega ao mesmo tempo em que o Papa se precipita em condenar um aplicativo para smart-phones, através do qual o fiel antenado se confessaria on line, sem a necessidade de se ajoelhar na madeira dura de um confessionário escurecido por muitos pecados ali penitenciados. Ao menos dessa vez, ufa!, o Papa mostrou que “tá ligado”, pois a web não substitui a presença física.

Na mesma vertente, podemos falar da repetitiva pergunta se é possível fazer análise por skype, ou serviço semelhante, sem ter que se preocupar com o terrível trânsito das grandes cidades, bem como se garantir em ter seu analista à mão, ou melhor, na tela, entre um mergulho e outro, em uma ilha paradisíaca, do outro lado do mundo.
Não dá. Há um quê na presença física que é insubstituível. E se dizemos “um quê” é exatamente pelo fato de não podermos precisar o que é isso da presença física que não sabemos traduzir em nenhum idioma e por nenhum meio, razão pela qual não a podemos substituir, pois, como celebrou Michel Foucault: “a palavra é a morte da coisa”; se falamos de algo, substituímos o algo pela palavra e não precisamos mais dele.
Em um mundo que quebrou os paradigmas cartesianos de espaço e tempo, jogando-nos no furacão do ilimitado sem fronteiras, não há nada a estranhar na necessidade da presença física do outro, do corpo do outro, do seu enigma, do cheiro, cor, som, movimento, textura, olhar, que não sabemos traduzir em bytes.

Esse enigma do outro é o remédio para a angústia tão atual, por nos termos visto transformar em habitantes de lugar nenhum.
Seis mil moças e moços geeks se acotovelaram por uma semana, em São Paulo, em uma festa chamada Campus Party. Seis mil!, em um pavilhão de exposições. É tão importante estarem juntos, que um nipo-brasileiro, morando ao lado do local da festa, trocou o conforto de seu quarto, por uma tendinha de campanha, verdadeiro elogio do desconforto.
A presença do outro nos remete ao mais essencial de nós mesmos. Se fôssemos honestos, parodiando Vinícius, jamais diríamos expressões do gênero: “no meu íntimo”. E isso porque o que nos escapa é exatamente o nosso íntimo. Diríamos, melhor, com Lacan: “no meu êxtimo”, sim, porque o meu íntimo me é tão estranho – quem já passou por uma análise sabe bem o que estou descrevendo – que melhor chamá-lo de êxtimo, clara alusão ao estranho e ao externo de si mesmo, que habita cada um.

Podemos nos livrar de muita coisa na vida, mas não da gente mesmo, em especial desse ponto íntimo desconhecido, promotor de nossas paixões, essa força estranha vivida na sensação do “mais forte que eu”. A presença física do amigo, do amado, do familiar, do próximo, nos reconecta com esse ponto fundamental, âncora de nossas existências, ponto transcendente de nossa imanência, se quisermos nos valer do discurso da Academia.
Nesse mundo de aparente tudo pode, e de em tudo estou, não por isso devemos nos assustar que ao lado do aumento dos acessos aos meios virtuais, vejamos crescer em paralelo os lugares de encontro físico, sejam eles campus parties, igrejas, consultórios, bares, cruzeiros. Os motivos são variados e o que neles se realiza, também, mas a necessidade é uma só: estar junto. Na era da pós-modernidade, onde o laço social das identificações é predominantemente horizontal, nos damos conta que o principal afeto, o mais fundamental afeto, é o da amizade.

Cada pessoa precisa de alguém que o ajude a chamar o seu êxtimo, de meu íntimo.

(artigo publicado na revista Psique nº 63, março 2011)