quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

"Estranhos Desejos"


cena do filme "Modigliani"

Artigo publicado na revista Isto É Platinum, out/nov 2008.
Jorge Forbes
O bom senso, que normalmente pensa mal, associa a compra boa e feliz a quando alguém adquire o que lhe é necessário, em especial, se pertencer à trinca das necessidades humanas fundamentais: saúde, educação e moradia. Essa fórmula do politicamente correto funciona ao nível da necessidade, mas nem sempre ao nível do desejo. Desejar é ter um desejo sempre de outra coisa, afirmava Jacques Lacan. Os exemplos chocam: para terror da patroa, sua cozinheira comprou uma boneca de presente de natal para sua filha, empenhando a própria bicicleta. Para desespero da esposa, seu marido pagou cinqüenta mil dólares no carrinho de brinquedo que faltava à sua coleção. Para desconsolo da viúva, sua filha gastou todo o 13º salário, em uma viagem para uma ilha semi-selvagem. Afirmar que esses fatos só ocorrem em um sistema de capitalismo selvagem, corruptor de mentes fracas, hipnotizador perverso e aliciador do consumismo suicida, é acreditar em utopias. As condições de escolha de um objeto, como também de uma pessoa são sempre muito estranhas aos olhos dos outros; é o que fez Fernando Pessoa escrever que todas as cartas de amor são ridículas.
Os tempos de hoje, da globalização, são ainda mais propícios às expressões singulares de cada pessoa, aumentando a taxa de estranheza das escolhas. Isso porque estamos em um tempo no qual não há padrões fixos do que se deve fazer, ou do como se pode ter prazer corretamente. Aumenta muito a responsabilidade de cada um de com quem está, em que lugar, e com o que. Está com os dias contados o exibicionismo do objeto de luxo para mostrar poder e exclusividade, a questão não é mais de impressionar o outro, mas de, como um artista, fazer sua opção subjetiva, e incluí-la no mundo.
Felicidade não tem preço, diz a sabedoria popular, não no sentido de ser muito cara, mas de que não é “precificável”, de que nunca se acha o justo valor. Os objetos da pura necessidade, espera-se que sejam gratuitos, pois se nos puseram nesse mundo, que nos cuidem, ensinem e abriguem; já os objetos de desejo, que cada um responda.

 

Emprestando conseqüência- quando Freud não explica II- parte

Optei por postar o link, pois o texto apresenta 'desenhos/gráficos" que não é possível a postagem aqui.

http://www.ebp.org.br/biblioteca/pdf_biblioteca/Jorge_Forbes_Emprestando_%20Consequencia.pdf

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Emprestando Conseqüência-quando Freud não explica


Emprestando Conseqüência-quando Freud não explica
Jorge Forbes

Há duas clínicas no ensino de Jacques Lacan:

I- Uma primeira, a do significante, a que se baseia na estrutura do inconsciente como uma linguagem, e uma segunda, a clínica do gozo, ou a da identificação ao sintoma, que trata dos fenômenos que ultrapassam a captura da singularidade do sujeito pela palavra. Este é o grande debate, no momento, na Associação Mundial de Psicanálise. É importante por duas razões:
Primeira, por colocar em relevo um Lacan do significante em contraste a um outro Lacan, mais além da palavra em associação livre e, segunda, é conveniente para nos apercebermos que a primeira clínica é coerente e adequada ao sujeito da era industrial, aquele marcado pelas identificações verticais (pai, pátria, moeda, fronteiras), enquanto a segunda clínica prepara o terreno para o tratamento dos novos sintomas do sujeito da era da globalização, que sofre um desvario do seu gozo, decorrente da quebra dos ideais.
É, portanto, um temo novo, atual e complexo, podendo ser abordado por diversos vieses.
Escolhi um, que propus em título deste artigo: "Emprestando conseqüência". Proponho pensar que se na primeira clínica o analista empresta sentido ao que diz o analisando, na segunda, o que ele faz é emprestar conseqüência. Ao emprestar sentido, cada fala do analisando remete a outra, e mais outra, e assim por diante. Se, por um lado, isto tem um efeito revelador bastante conhecido, por outro, pode dar impressão à pessoa, de que o que ela diz não tem  muita importância ou conseqüência – como quero destacar – pois ela espera que o que importa é o que ainda não foi dito. Assim, podemos encontrar exemplos de falas bastante duras, de julgamentos pesados, que contam com esse efeito derrisório, como se o que valesse mesmo fosse o que ainda estivesse por vir, algo ainda não falado.
Para ilustrar, transcrevo algumas intervenções atribuídas a Lacan:
O paciente declara:
– Oh lá, como eu sou burro.
Lacan:
Não é porque o senhor o diz que não seja verdade. (1)
Ou ainda:
O senhor deve se dar conta que se o senhor pensa que os outros pensam que o senhor pensa mal, é talvez simplesmente porque o senhor pensa mal. (2)
Outro caso:
O senhor talvez imagine que não sou tão inteligente quanto o senhor (fala o paciente).
Quem lhe diz o contrário ? (3)
Sempre na mesma linha :
O paciente chega, deita e passados alguns instantes :
Não tenho nada a dizer...
Reposta :
Ok, isso acontece ! Até amanhã, caro. (4)
Em todas essas passagens da clínica destacamos o mesmo elemento: a conseqüência do que se diz.

II- O quadro da primeira e da segunda clínica  ( próxima postagem)

Jorge Forbes é psicanalista e médico psiquiatra. É Analista Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (A.M.E.), Preside o IPLA – Instituto da Psicanálise Lacaniana e dirige a Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano da USP.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

"O afeto no tempo"

Divã -Consultório de Freud-

E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.
A certos momentos do dia recordo tudo isso e apavoro-me,
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
Desta estrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,
Desta turbulência tranqüila de sensações desencontradas,
Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os prazeres,
Desta saciedade antecipada na asa de todas as chávenas,
Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.
Não sei se a vida é pouco ou demais para mim."
Fernando Pessoa
Tratando do Gozo no Tempo, notamos que "o  homem moderno vive uma espécie de antinomia com o tempo, uma espécie de disputa em que as horas são inimigas e ao mesmo tempo preciosas" (Corrêa, 2001). Com isso o tempo perde sua suposta condição de objetividade, tornando-se um ponto de incidência de suas reações afetivas. O tempo que passa, o difícil dia que se finda, a marca atenuada ou culposa do passado, a inexorável incisão do presente, ou o campo de incertezas do futuro, são marcas de uma adjetivação clara em que falar do tempo sugere sempre uma conotação de bom, mau, produtivo, triste, alegre. O afeto incide sobre o tempo vivido transformando-o e tornando-o um atributo (com qualidades que não pertencem à sua essência). Ao tempo assim vivido, deve-se acrescentar a questão de que estados diferentes de afeto são responsáveis pela percepção alterada do tempo. O saudoso professor Lopez Ibor (1969) em feliz sentença definiu a angústia como uma concentração de tempo. Palavras, ocorrências, dificuldades a resolver, o trabalho e afetos diferentes, muitas vezes coisas toleráveis a seu tempo, se reúnem em um espaço de tempo impossível à consciência. De outra forma, a relação entre afeto e percepção subjetiva do tempo é uma vivência comum a todos nós. A lentidão do tempo de sofrimento e de espera e o tédio imobilizador do relógio fazem contraponto aos momentos felizes, ao encontro com o prazer quando tudo passa tão depressa. A literatura tem se mostrado extremamente rica na apresentação das variações do sentir a espera marcada pelo desejo, o ato de consumo e a nostalgia da conclusão do ato ou até uma espécie de luto pela perda do desejo saciado. Na verdade, é como Lacan ensinou em 1962. O afeto está sempre ligado àquilo que nos constitui como sujeitos desejantes em nossa relação com o outro semelhante, com o grande Outro, como lugar do significante e da representação do objeto a. A manifestação literária do afeto tocando todos estes pontos é como se tocasse o Real, que o poeta toma como se fosse a própria vida. Esta é a matéria-prima fundamental da poesia.
"O afeto no tempo"
Carlos Pinto Corrêa
Trabalho apresentado na Jornada Comemorativa dos 15 anos do CPS. I Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia.
Texto na Integra:

domingo, 23 de janeiro de 2011

“A diferença que se é”

Jorge Forbes

Sucesso, êxito e destaque nos colocam, muitas vezes, fora do senso comum, Nos diferenciando dos outros. É desta forma que nos sentimos sozinhos, deslocados do nosso meio social e angustiados.

Usamos indistintamente três palavras para definir um mo­mento de exaltação por uma conquista, são elas: sucesso, êxito, destaque. Notem como já toquei em artigo anterior, que elas têm algo em comum, a saber, dizem que alguma coisa fica de fora. ‘Sucesso’ vem do latim cedere, que dá em português ‘ceder’. Sucesso é o que vem depois, como em ‘sucessão’, em ‘suceder’. Como diz a canção, com o sucesso “nada mais será como antes”: deixa-se um estado, abre-se um outro, desconhecido, no qual será preciso aprender a habitar. ‘Êxito’ vem também do latim exit, palavrinha que aprendemos o sentido nos cinemas da nossa infância, pois estava sempre escrita sobre a porta de saída (em luz verde ou vermelha). ‘Êxito’ se traduz em sair, em deixar. Até quando se deixa a vida, o jargão médico pomposamente disfarça a dor proclamando: -”Obteve êxito letal”. ‘Destaque’, também de base latina, destaccare, retirar, separar, tem origem menos bem definida, entre o germâni­co, o espanhol e o francês, vide Houaiss. No francês, ‘destaque’ viria de ‘détacher’, o que quer dizer se desligar, sair do nó do rolo. No espanhol, ‘salientar’, e no germânico, sair da ‘estaca’. Essas três acepções contradizem o bom senso que pensa – e pensa sem­pre mal esse tal de bom senso –que é formidável ser alguém de destaque,que o duro é ser medíocre, comum, genérico. Nada disso.Arriscaria dizer que recebo no consultório mais sofrimentos pelo su­cesso que pelo seu contrário. É claro que ninguém chega dizendo: – “Vim aqui porque comprei a casa dos meus sonhos”, ou algo parecido, não, mes­mo porque até o leigo sabe e tem medo de ser taxado de masoquista. As pessoas se queixam aproximadamente sempre das mesmas coisas porque no fundo a queixa é uma interpretação de que algo não vai bem, e o arsenal de queixas que a sociedade legitima é restrito, daí suas repetições. É como os nomes: temos muitas Marias, Lui­zes  Albertos, Sofias, porque o nome de uma pessoa é escolhido habitual­mente em uma lista socialmente va­lidada. Quando não, aliás, o risco do ridículo é muito grande, todo mundo conhece um exemplo. Voltando às queixas, exatamente para não cair no ridículo, essa alguma coisa que incomoda dentro acaba rece­bendo um nome que não lhe cabe nada bem, confundindo a própria pessoa, quando não, também, seu terapeuta.

“Pertencer ao grupo exige que cada um ceda em parte suas características singulares, para caber no uniforme grupal”.

Leva-se um tempo em Psicanálise para se desfazer dos falsos nomes da dor, dos nomes prêt-à-porter disponí­veis no mercado. Quantas vezes não ouvimos: ”Mas não é possível que eu esteja sofrendo porque consegui a casa dos meus sonhos, isso vai contra o bom senso”. Êta bom senso trapalhão! É muito difícil para a pessoa legitimar que está mal por algo que supostamen­te lhe deveria causar o bem. Nós sofremos no sucesso, no êxito, no destaque porque aí ficamos sós. O fracasso é solidário, mas a vitória é soli­tária. Se você diz que está transtornado por ter sido assaltado no trânsito, seus interlocutores vão dizer: - “Eu também”, “Eu também”, “Eu também”. Agora, se você diz que conseguiu finalmente sua casa nova e maravilhosa, vão dizer: - “Você não tem medo de ser assaltado, morando em uma casa?”.Chamei a atenção para as três pala­vras que comento aqui remeterem a sair, a cair, a se despregar, mas do quê? Do grupo humano a que pertencemos. Não há quem viva fora de um grupo, seja ele qual for: família, escola, profissão, clube, etc. O conforto do grupo, sim, confor­to porque reafirmamos nossa identida­de no grupo de nosso pertencimento, exige que cada um ceda em parte suas características singulares, para caber no uniforme grupal. Aí, quando se dá um momento de forte diferença, por algo que se conseguiu, nos vemos destacados e angustiados exatamente pelo nosso destaque. O que fazer? Existe a resposta tímida e a ousada, se quisermos simplificar. A tímida nos leva a recuar, a diminuir o fato aconteci­do, de preferência a anulá-lo se possível, às vezes até causando um acidente gra­ve. A ousada exige dois movimentos: legitimar a sua diferença, nomeando-a singularmente e incluí-la no mundo, pois ninguém agüenta muito tempo a solidão criativa. É o que fazem os artis­tas: vêem uma banda onde ninguém viu e fazem todo mundo cantar a sua Ban­da, como fez o Chico. O talento nessa operação varia muito, mas o movimen­to é o mesmo. Não importa o tamanho da platéia, o que importa é não recuar sobre a diferença que se é.

Jorge Forbes é psicanalista e médico psiquiatra. É Analista Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (A.M.E.), Preside o IPLA – Instituto da Psicanálise Lacaniana e dirige a Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano da USP.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

"DENTRO DE MIM" Parte II

Escrevo só porque
Há uma voz dentro de mim
Que não se cala nunca.

(Sylvia Plath)

...Contudo existem situações, sobre as quais lhes falarei daqui a pouco, em que tudo parece caminhar numa outra direção, e é então que essas concepções que acabei de rever deixam de nos ajudar. Não só porque mantém inexplicado o fato de que o indivíduo criativo não está livre de desenvolver sintomas ou outros tipos de manifestação de sofrimento psíquico, como também, se nos ampararmos nelas pensando que a sublimação constitui uma saída menos sofrida, logo veremos que não adianta recomendar que alguém pinte um quadro ou escreva um poema, em vez de ficar confinado no sofrimento, mesmo se esse indivíduo possui talento. Além disso, embora essas formulações sobre a sublimação aludam à via de mão dupla que parece existir entre o sofrimento emocional e o processo criativo, elas apenas nos mostram o que, dentro e fora da psicanálise, todos pensam sobre a criatividade, que é o seu lado funcional. Para irmos um pouco além, é preciso destacar uma importante noção sobre a sublimação que Freud apresentou somente em 1923, em uma formulação mais tardia. Essa noção é geralmente pouco citada, eu diria mesmo que é recalcada, na medida em que contém algo inquietante para aqueles que se apegam à idéia de que a arte e a literatura constituem algo sagrado que deve ser mantido intacto protegido da profanação perpetrada pelo olhar da metapsicologia psicanalítica. Se de todo já não era fácil admitir a linha de continuidade que Freud estabeleceu entre a sublimação e a sexualidade infantil, mais difícil ainda será concordar em acompanhá-lo quando, em O Ego e o Id, ressaltar a característica desfusão pulsional envolvida na sublimação, aspecto que, em decorrência da dessexua-lização, “coloca o eu a serviço de objetivos opostos aos das pulsões de vida”. A partir do momento em que a pulsão de morte é introduzida na teoria psicanalítica, Freud pensará que da sublimação resulta uma liberação das pulsões agressivas no supereu, pulsões que lutam contra a libido, ficando o eu exposto “ao perigo de maus-tratos e morte”. Segundo esta formulação, que a meu ver é imprescindível para uma análise do processo criativo e seus destinos, a sublimação não apenas não pode deixar de se referir à angústia ou à dor psíquica (mesmo se pensarmos na criatividade como um destino “mais nobre”, mais feliz ou menos defensivo para o sofrimento) como também em seu interior a possibilidade – senão o necessário retorno – dos elementos sentidos como perigosos internamente implica um risco que a própria noção de “destino menos defensivo” ressalta ainda mais. Em outras palavras, na sublimação é preciso que o artista e o escritor mantenham algum grau de contato com a fonte desses perigos para poder criar. Se nada disso impede que, por meio da produção artística e literária, alguém canalize, ligue e transforme, em diferentes níveis, os derivados do campo pulsional – já que é por meio dessas ligações e dessas transformações que o psiquismo tenta dominar a intensidade de tais processos – não parece, porém, que o indivíduo esteja protegido dos perigos internos por meio da sublimação, já que, como nos adverte Freud, ela própria é potencialmente desorganizadora. Esses aspectos apontam para a existência de limites na economia da sublimação (limites não do conceito, que a meu ver permanece sendo um bom conceito, mas na função dos processos psíquicos descritos sob esse nome). Talvez fosse interessante considerarmos que é a maior ou menor proximidade dos arranjos sublimatórios em relação ao sofrimento que eles buscam dominar que dará conta dos vários destinos da criatividade, tenham eles êxito ou caminhem para o fracasso. Os destinos desses arranjos devem ser entendidos, descritivamente, como variações na distância da sublimação em relação às fontes pulsionais. Se considerarmos estes aspectos, estaremos mais preparados para abordar um fenômeno intrigante, que é a morte trágica daqueles escritores (sobretudo aqueles que, confessadamente, acreditavam na função organizadora, senão terapêutica de seu trabalho) que se suicidaram durante um período de intensa produtividade literária. Resguardada a diversidade dos contextos históricos, culturais e individuais em todos os casos que pudéssemos aqui evocar, talvez seja possível avaliar o tipo de envolvimento existente entre a sublimação e o sofrimento emocional, se examinarmos de perto a relação entre a escrita literária e o suicídio do escritor. Portanto, nós nos vemos aqui obrigados a pensar não só no caráter funcional e prazeroso do processo criativo, mas também nos elementos que circunscrevem os limites da sublimação e indicam a presença de aspectos disfuncionais no interior desse campo. É por esta razão que precisamos recorrer à formulação freudiana de 1923, que mencionei agora há pouco, porque, mais do que as outras concepções, ela nos ajuda a esclarecer a natureza desses limites, que dizem respeito à função da escrita como sublimação e à destrutividade potencial que existe entre a ordem pulsional e os recursos disponíveis para a sua contenção e eventual transformação.

Pesquisa/texto-sueliaduan
Título no blog -sueliaduan

Ana Cecília Carvalho
Psicanalista. Escritora e professora-adjunta no Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, onde leciona na Graduação em Psicologia e na Pós-Graduação (Mestrado e Especialização) em Psicanálise. É doutora em literatura comparada e autora dos livros A poética do suicídio em Sylvia Plath (BH: Editora da UFMG, 2003) e Uma mulher, outra mulher (BH: Lê, 1993), entre outros

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

"DENTRO DE MIM"

Escrevo só porque
Há uma voz dentro de mim
Que não se cala nunca.

(Sylvia Plath)

Uma questão tem-me movido em minhas pesquisas sobre o processo da criação literária, revelando um aspecto que, não sendo em geral percebido imediatamente na relação da arte com o psíquico, parece interpelar a psicanálise. Poderíamos colocar essa questão de um modo simples, embora sua resposta exija certo esforço: por que será que, para alguns, a criatividade constitui uma via de transformação e prazer onde antes havia sofrimento, enquanto para outros essa mesma via não só não liquida o sofrimento como também parece alimentá-lo? Na minha exposição tentarei jogar alguma luz, ainda que modesta, sobre esse problema complexo. Sem nunca ter tido a pretensão de esclarecer completamente o enigma do processo criativo, Freud o relacionava, como sabemos, ao conceito de sublimação, um dos “destinos pulsionais”, como ele a descreveu. Neste ponto é importante lembrar a advertência feita por Sarah Kofman, em seu livro A infância da arte, ao afirmar que devemos pensar na sublimação não como um conceito moral, mas sim como um conceito metapsicológico. Vista dessa maneira, a noção de sublimação nos possibilita examinar o processo criativo do mesmo modo que faríamos para analisar qualquer formação relativa ao campo pulsional, levando em conta à dinâmica nela envolvida, sua determinação inconsciente e sua economia. Esta perspectiva permite pensarmos no que estaria envolvido na metapsicologia do processo criativo em geral e na escrita literária em particular, destacando os elementos que se relacionam às suas funções e limites. Na dimensão da escrita literária, podemos descrever esses limites em extremos que ora se distanciam ora se aproximam e se misturam em uma espécie de fertilização cruzada, para produzir o texto: o pólo da vida e o pólo da obra; o pólo do transbordamento pulsional e o pólo da simbolização; o pólo do excesso e o pólo da contenção, o pólo funcional e o pólo disfuncional. Para continuar respondendo à pergunta formulada no início, precisamos ter em mente três das noções mais conhecidas sobre a criatividade. Vou retomá-las rapidamente para ver em que medida elas nos ajudam. A primeira dessas noções segue as primeiras formulações de Freud sobre a sublimação e atribui a esse peculiar destino pulsional a capacidade de sempre promover uma espécie de apaziguamento do sofrimento psíquico, organizando-o numa direção construtiva e benéfica. Segundo essa visão, ali onde os sintomas são os resultados de um arranjo conciliatório – nem sempre condenado ao fracasso, é verdade – entre as forças antagônicas que fazem parte do psiquismo, a sublimação, não sendo propriamente uma conciliação, seria uma alternativa mais “saudável” do que as defesas desgastantes que possuímos para lidar com nossos conflitos. Desse modo a sublimação seria um processo que transforma o mundo interno daquele que cria, em algo organizado senão prazeroso. Segundo uma outra concepção, de inspiração lacaniana, pelo menos para alguns indivíduos a criatividade, não se opondo à formação dos sintomas e de outros fenômenos, permite também alguma forma de inscrição subjetiva. Na medida em que por meio da criação o sujeito, digamos, firma a singularidade da sua assinatura fazendo, assim, um ponto de amarração em seu posicionamento subjetivo – como nos mostrou Lacan em “Joyce, o Sintoma” –, o sofrimento psíquico encontraria na via da criação uma expressão diferente dos sintomas da neurose e das manifestações da psicose, naquilo que os caracteriza como expressão cifrada, repetida e não compartilhável. Uma terceira formulação, derivada desta última concepção, entende que a especificidade da sublimação talvez tenha muito mais a ver com o efeito que resulta na transformação compartilhável de uma experiência subjetiva singular, ou seja, no tipo de laço social estabelecido através do produto artístico, do que com uma suposta interioridade de onde provém o impulso criativo. Ninguém pode negar que tais possibilidades existem, e certamente é incontável o número de pessoas que conseguiram encontrar uma outra via de expressão e de transformação de seus problemas, através da arte e da criação literária, ainda que isso não tivesse sido o principal motivo que as levou a esse campo.

Pesquisa/texto-sueliaduan
Título no blog -sueliaduan

Ana Cecília Carvalho
Psicanalista. Escritora e professora-adjunta no Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, onde leciona na Graduação em Psicologia e na Pós-Graduação (Mestrado e Especialização) em Psicanálise. É doutora em literatura comparada e autora dos livros A poética do suicídio em Sylvia Plath (BH: Editora da UFMG, 2003) e Uma mulher, outra mulher (BH: Lê, 1993), entre outros


FREUD, S. (1915) Os instintos e suas vicissitudes. Edição Standard Brasileira
das obras completas, vol. XIV.Rio de Janeiro: Imago, 1976.

KOFMAN, Sarah (1996). A Infância da Arte: Uma Interpretação da Estética
Freudiana./Tradução Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.

LACAN, J. O Seminário - Livro 23 - O sinthoma. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 2007.