quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

"O afeto no tempo"

Divã -Consultório de Freud-

E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.
A certos momentos do dia recordo tudo isso e apavoro-me,
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
Desta estrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,
Desta turbulência tranqüila de sensações desencontradas,
Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os prazeres,
Desta saciedade antecipada na asa de todas as chávenas,
Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.
Não sei se a vida é pouco ou demais para mim."
Fernando Pessoa
Tratando do Gozo no Tempo, notamos que "o  homem moderno vive uma espécie de antinomia com o tempo, uma espécie de disputa em que as horas são inimigas e ao mesmo tempo preciosas" (Corrêa, 2001). Com isso o tempo perde sua suposta condição de objetividade, tornando-se um ponto de incidência de suas reações afetivas. O tempo que passa, o difícil dia que se finda, a marca atenuada ou culposa do passado, a inexorável incisão do presente, ou o campo de incertezas do futuro, são marcas de uma adjetivação clara em que falar do tempo sugere sempre uma conotação de bom, mau, produtivo, triste, alegre. O afeto incide sobre o tempo vivido transformando-o e tornando-o um atributo (com qualidades que não pertencem à sua essência). Ao tempo assim vivido, deve-se acrescentar a questão de que estados diferentes de afeto são responsáveis pela percepção alterada do tempo. O saudoso professor Lopez Ibor (1969) em feliz sentença definiu a angústia como uma concentração de tempo. Palavras, ocorrências, dificuldades a resolver, o trabalho e afetos diferentes, muitas vezes coisas toleráveis a seu tempo, se reúnem em um espaço de tempo impossível à consciência. De outra forma, a relação entre afeto e percepção subjetiva do tempo é uma vivência comum a todos nós. A lentidão do tempo de sofrimento e de espera e o tédio imobilizador do relógio fazem contraponto aos momentos felizes, ao encontro com o prazer quando tudo passa tão depressa. A literatura tem se mostrado extremamente rica na apresentação das variações do sentir a espera marcada pelo desejo, o ato de consumo e a nostalgia da conclusão do ato ou até uma espécie de luto pela perda do desejo saciado. Na verdade, é como Lacan ensinou em 1962. O afeto está sempre ligado àquilo que nos constitui como sujeitos desejantes em nossa relação com o outro semelhante, com o grande Outro, como lugar do significante e da representação do objeto a. A manifestação literária do afeto tocando todos estes pontos é como se tocasse o Real, que o poeta toma como se fosse a própria vida. Esta é a matéria-prima fundamental da poesia.
"O afeto no tempo"
Carlos Pinto Corrêa
Trabalho apresentado na Jornada Comemorativa dos 15 anos do CPS. I Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia.
Texto na Integra:

domingo, 23 de janeiro de 2011

“A diferença que se é”

Jorge Forbes

Sucesso, êxito e destaque nos colocam, muitas vezes, fora do senso comum, Nos diferenciando dos outros. É desta forma que nos sentimos sozinhos, deslocados do nosso meio social e angustiados.

Usamos indistintamente três palavras para definir um mo­mento de exaltação por uma conquista, são elas: sucesso, êxito, destaque. Notem como já toquei em artigo anterior, que elas têm algo em comum, a saber, dizem que alguma coisa fica de fora. ‘Sucesso’ vem do latim cedere, que dá em português ‘ceder’. Sucesso é o que vem depois, como em ‘sucessão’, em ‘suceder’. Como diz a canção, com o sucesso “nada mais será como antes”: deixa-se um estado, abre-se um outro, desconhecido, no qual será preciso aprender a habitar. ‘Êxito’ vem também do latim exit, palavrinha que aprendemos o sentido nos cinemas da nossa infância, pois estava sempre escrita sobre a porta de saída (em luz verde ou vermelha). ‘Êxito’ se traduz em sair, em deixar. Até quando se deixa a vida, o jargão médico pomposamente disfarça a dor proclamando: -”Obteve êxito letal”. ‘Destaque’, também de base latina, destaccare, retirar, separar, tem origem menos bem definida, entre o germâni­co, o espanhol e o francês, vide Houaiss. No francês, ‘destaque’ viria de ‘détacher’, o que quer dizer se desligar, sair do nó do rolo. No espanhol, ‘salientar’, e no germânico, sair da ‘estaca’. Essas três acepções contradizem o bom senso que pensa – e pensa sem­pre mal esse tal de bom senso –que é formidável ser alguém de destaque,que o duro é ser medíocre, comum, genérico. Nada disso.Arriscaria dizer que recebo no consultório mais sofrimentos pelo su­cesso que pelo seu contrário. É claro que ninguém chega dizendo: – “Vim aqui porque comprei a casa dos meus sonhos”, ou algo parecido, não, mes­mo porque até o leigo sabe e tem medo de ser taxado de masoquista. As pessoas se queixam aproximadamente sempre das mesmas coisas porque no fundo a queixa é uma interpretação de que algo não vai bem, e o arsenal de queixas que a sociedade legitima é restrito, daí suas repetições. É como os nomes: temos muitas Marias, Lui­zes  Albertos, Sofias, porque o nome de uma pessoa é escolhido habitual­mente em uma lista socialmente va­lidada. Quando não, aliás, o risco do ridículo é muito grande, todo mundo conhece um exemplo. Voltando às queixas, exatamente para não cair no ridículo, essa alguma coisa que incomoda dentro acaba rece­bendo um nome que não lhe cabe nada bem, confundindo a própria pessoa, quando não, também, seu terapeuta.

“Pertencer ao grupo exige que cada um ceda em parte suas características singulares, para caber no uniforme grupal”.

Leva-se um tempo em Psicanálise para se desfazer dos falsos nomes da dor, dos nomes prêt-à-porter disponí­veis no mercado. Quantas vezes não ouvimos: ”Mas não é possível que eu esteja sofrendo porque consegui a casa dos meus sonhos, isso vai contra o bom senso”. Êta bom senso trapalhão! É muito difícil para a pessoa legitimar que está mal por algo que supostamen­te lhe deveria causar o bem. Nós sofremos no sucesso, no êxito, no destaque porque aí ficamos sós. O fracasso é solidário, mas a vitória é soli­tária. Se você diz que está transtornado por ter sido assaltado no trânsito, seus interlocutores vão dizer: - “Eu também”, “Eu também”, “Eu também”. Agora, se você diz que conseguiu finalmente sua casa nova e maravilhosa, vão dizer: - “Você não tem medo de ser assaltado, morando em uma casa?”.Chamei a atenção para as três pala­vras que comento aqui remeterem a sair, a cair, a se despregar, mas do quê? Do grupo humano a que pertencemos. Não há quem viva fora de um grupo, seja ele qual for: família, escola, profissão, clube, etc. O conforto do grupo, sim, confor­to porque reafirmamos nossa identida­de no grupo de nosso pertencimento, exige que cada um ceda em parte suas características singulares, para caber no uniforme grupal. Aí, quando se dá um momento de forte diferença, por algo que se conseguiu, nos vemos destacados e angustiados exatamente pelo nosso destaque. O que fazer? Existe a resposta tímida e a ousada, se quisermos simplificar. A tímida nos leva a recuar, a diminuir o fato aconteci­do, de preferência a anulá-lo se possível, às vezes até causando um acidente gra­ve. A ousada exige dois movimentos: legitimar a sua diferença, nomeando-a singularmente e incluí-la no mundo, pois ninguém agüenta muito tempo a solidão criativa. É o que fazem os artis­tas: vêem uma banda onde ninguém viu e fazem todo mundo cantar a sua Ban­da, como fez o Chico. O talento nessa operação varia muito, mas o movimen­to é o mesmo. Não importa o tamanho da platéia, o que importa é não recuar sobre a diferença que se é.

Jorge Forbes é psicanalista e médico psiquiatra. É Analista Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (A.M.E.), Preside o IPLA – Instituto da Psicanálise Lacaniana e dirige a Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano da USP.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

"DENTRO DE MIM" Parte II

Escrevo só porque
Há uma voz dentro de mim
Que não se cala nunca.

(Sylvia Plath)

...Contudo existem situações, sobre as quais lhes falarei daqui a pouco, em que tudo parece caminhar numa outra direção, e é então que essas concepções que acabei de rever deixam de nos ajudar. Não só porque mantém inexplicado o fato de que o indivíduo criativo não está livre de desenvolver sintomas ou outros tipos de manifestação de sofrimento psíquico, como também, se nos ampararmos nelas pensando que a sublimação constitui uma saída menos sofrida, logo veremos que não adianta recomendar que alguém pinte um quadro ou escreva um poema, em vez de ficar confinado no sofrimento, mesmo se esse indivíduo possui talento. Além disso, embora essas formulações sobre a sublimação aludam à via de mão dupla que parece existir entre o sofrimento emocional e o processo criativo, elas apenas nos mostram o que, dentro e fora da psicanálise, todos pensam sobre a criatividade, que é o seu lado funcional. Para irmos um pouco além, é preciso destacar uma importante noção sobre a sublimação que Freud apresentou somente em 1923, em uma formulação mais tardia. Essa noção é geralmente pouco citada, eu diria mesmo que é recalcada, na medida em que contém algo inquietante para aqueles que se apegam à idéia de que a arte e a literatura constituem algo sagrado que deve ser mantido intacto protegido da profanação perpetrada pelo olhar da metapsicologia psicanalítica. Se de todo já não era fácil admitir a linha de continuidade que Freud estabeleceu entre a sublimação e a sexualidade infantil, mais difícil ainda será concordar em acompanhá-lo quando, em O Ego e o Id, ressaltar a característica desfusão pulsional envolvida na sublimação, aspecto que, em decorrência da dessexua-lização, “coloca o eu a serviço de objetivos opostos aos das pulsões de vida”. A partir do momento em que a pulsão de morte é introduzida na teoria psicanalítica, Freud pensará que da sublimação resulta uma liberação das pulsões agressivas no supereu, pulsões que lutam contra a libido, ficando o eu exposto “ao perigo de maus-tratos e morte”. Segundo esta formulação, que a meu ver é imprescindível para uma análise do processo criativo e seus destinos, a sublimação não apenas não pode deixar de se referir à angústia ou à dor psíquica (mesmo se pensarmos na criatividade como um destino “mais nobre”, mais feliz ou menos defensivo para o sofrimento) como também em seu interior a possibilidade – senão o necessário retorno – dos elementos sentidos como perigosos internamente implica um risco que a própria noção de “destino menos defensivo” ressalta ainda mais. Em outras palavras, na sublimação é preciso que o artista e o escritor mantenham algum grau de contato com a fonte desses perigos para poder criar. Se nada disso impede que, por meio da produção artística e literária, alguém canalize, ligue e transforme, em diferentes níveis, os derivados do campo pulsional – já que é por meio dessas ligações e dessas transformações que o psiquismo tenta dominar a intensidade de tais processos – não parece, porém, que o indivíduo esteja protegido dos perigos internos por meio da sublimação, já que, como nos adverte Freud, ela própria é potencialmente desorganizadora. Esses aspectos apontam para a existência de limites na economia da sublimação (limites não do conceito, que a meu ver permanece sendo um bom conceito, mas na função dos processos psíquicos descritos sob esse nome). Talvez fosse interessante considerarmos que é a maior ou menor proximidade dos arranjos sublimatórios em relação ao sofrimento que eles buscam dominar que dará conta dos vários destinos da criatividade, tenham eles êxito ou caminhem para o fracasso. Os destinos desses arranjos devem ser entendidos, descritivamente, como variações na distância da sublimação em relação às fontes pulsionais. Se considerarmos estes aspectos, estaremos mais preparados para abordar um fenômeno intrigante, que é a morte trágica daqueles escritores (sobretudo aqueles que, confessadamente, acreditavam na função organizadora, senão terapêutica de seu trabalho) que se suicidaram durante um período de intensa produtividade literária. Resguardada a diversidade dos contextos históricos, culturais e individuais em todos os casos que pudéssemos aqui evocar, talvez seja possível avaliar o tipo de envolvimento existente entre a sublimação e o sofrimento emocional, se examinarmos de perto a relação entre a escrita literária e o suicídio do escritor. Portanto, nós nos vemos aqui obrigados a pensar não só no caráter funcional e prazeroso do processo criativo, mas também nos elementos que circunscrevem os limites da sublimação e indicam a presença de aspectos disfuncionais no interior desse campo. É por esta razão que precisamos recorrer à formulação freudiana de 1923, que mencionei agora há pouco, porque, mais do que as outras concepções, ela nos ajuda a esclarecer a natureza desses limites, que dizem respeito à função da escrita como sublimação e à destrutividade potencial que existe entre a ordem pulsional e os recursos disponíveis para a sua contenção e eventual transformação.

Pesquisa/texto-sueliaduan
Título no blog -sueliaduan

Ana Cecília Carvalho
Psicanalista. Escritora e professora-adjunta no Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, onde leciona na Graduação em Psicologia e na Pós-Graduação (Mestrado e Especialização) em Psicanálise. É doutora em literatura comparada e autora dos livros A poética do suicídio em Sylvia Plath (BH: Editora da UFMG, 2003) e Uma mulher, outra mulher (BH: Lê, 1993), entre outros

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

"DENTRO DE MIM"

Escrevo só porque
Há uma voz dentro de mim
Que não se cala nunca.

(Sylvia Plath)

Uma questão tem-me movido em minhas pesquisas sobre o processo da criação literária, revelando um aspecto que, não sendo em geral percebido imediatamente na relação da arte com o psíquico, parece interpelar a psicanálise. Poderíamos colocar essa questão de um modo simples, embora sua resposta exija certo esforço: por que será que, para alguns, a criatividade constitui uma via de transformação e prazer onde antes havia sofrimento, enquanto para outros essa mesma via não só não liquida o sofrimento como também parece alimentá-lo? Na minha exposição tentarei jogar alguma luz, ainda que modesta, sobre esse problema complexo. Sem nunca ter tido a pretensão de esclarecer completamente o enigma do processo criativo, Freud o relacionava, como sabemos, ao conceito de sublimação, um dos “destinos pulsionais”, como ele a descreveu. Neste ponto é importante lembrar a advertência feita por Sarah Kofman, em seu livro A infância da arte, ao afirmar que devemos pensar na sublimação não como um conceito moral, mas sim como um conceito metapsicológico. Vista dessa maneira, a noção de sublimação nos possibilita examinar o processo criativo do mesmo modo que faríamos para analisar qualquer formação relativa ao campo pulsional, levando em conta à dinâmica nela envolvida, sua determinação inconsciente e sua economia. Esta perspectiva permite pensarmos no que estaria envolvido na metapsicologia do processo criativo em geral e na escrita literária em particular, destacando os elementos que se relacionam às suas funções e limites. Na dimensão da escrita literária, podemos descrever esses limites em extremos que ora se distanciam ora se aproximam e se misturam em uma espécie de fertilização cruzada, para produzir o texto: o pólo da vida e o pólo da obra; o pólo do transbordamento pulsional e o pólo da simbolização; o pólo do excesso e o pólo da contenção, o pólo funcional e o pólo disfuncional. Para continuar respondendo à pergunta formulada no início, precisamos ter em mente três das noções mais conhecidas sobre a criatividade. Vou retomá-las rapidamente para ver em que medida elas nos ajudam. A primeira dessas noções segue as primeiras formulações de Freud sobre a sublimação e atribui a esse peculiar destino pulsional a capacidade de sempre promover uma espécie de apaziguamento do sofrimento psíquico, organizando-o numa direção construtiva e benéfica. Segundo essa visão, ali onde os sintomas são os resultados de um arranjo conciliatório – nem sempre condenado ao fracasso, é verdade – entre as forças antagônicas que fazem parte do psiquismo, a sublimação, não sendo propriamente uma conciliação, seria uma alternativa mais “saudável” do que as defesas desgastantes que possuímos para lidar com nossos conflitos. Desse modo a sublimação seria um processo que transforma o mundo interno daquele que cria, em algo organizado senão prazeroso. Segundo uma outra concepção, de inspiração lacaniana, pelo menos para alguns indivíduos a criatividade, não se opondo à formação dos sintomas e de outros fenômenos, permite também alguma forma de inscrição subjetiva. Na medida em que por meio da criação o sujeito, digamos, firma a singularidade da sua assinatura fazendo, assim, um ponto de amarração em seu posicionamento subjetivo – como nos mostrou Lacan em “Joyce, o Sintoma” –, o sofrimento psíquico encontraria na via da criação uma expressão diferente dos sintomas da neurose e das manifestações da psicose, naquilo que os caracteriza como expressão cifrada, repetida e não compartilhável. Uma terceira formulação, derivada desta última concepção, entende que a especificidade da sublimação talvez tenha muito mais a ver com o efeito que resulta na transformação compartilhável de uma experiência subjetiva singular, ou seja, no tipo de laço social estabelecido através do produto artístico, do que com uma suposta interioridade de onde provém o impulso criativo. Ninguém pode negar que tais possibilidades existem, e certamente é incontável o número de pessoas que conseguiram encontrar uma outra via de expressão e de transformação de seus problemas, através da arte e da criação literária, ainda que isso não tivesse sido o principal motivo que as levou a esse campo.

Pesquisa/texto-sueliaduan
Título no blog -sueliaduan

Ana Cecília Carvalho
Psicanalista. Escritora e professora-adjunta no Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, onde leciona na Graduação em Psicologia e na Pós-Graduação (Mestrado e Especialização) em Psicanálise. É doutora em literatura comparada e autora dos livros A poética do suicídio em Sylvia Plath (BH: Editora da UFMG, 2003) e Uma mulher, outra mulher (BH: Lê, 1993), entre outros


FREUD, S. (1915) Os instintos e suas vicissitudes. Edição Standard Brasileira
das obras completas, vol. XIV.Rio de Janeiro: Imago, 1976.

KOFMAN, Sarah (1996). A Infância da Arte: Uma Interpretação da Estética
Freudiana./Tradução Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.

LACAN, J. O Seminário - Livro 23 - O sinthoma. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 2007.


terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Você está em análise?


Você está em análise? Etâ perguntinha difícil de responder; vejamos. Primeiro não, basta você dizer que vai a um psicanalista bem titulado, tantas vezes por semana. O carteiro do analista também vai lá com freqüência e nem por isso está em análise. Ficou conhecida a história de um paciente que após um bom tempo diz a "seu analista" que está chegando ao fim de seu trabalho. Este lhe responde: - "Engano seu, penso que o senhor está prestes a começar". Entrar em análise é mudar de posição subjetiva: a pessoa para de referir suas queixas às cenas atuais de seu cotidiano e passa a se entender em uma "Outra Cena", como dizia Freud. Isso é difícil de conseguir, pois a realidade sempre alivia o comprometimento de cada um em seu mal-estar, razão pela qual muitas pessoas adoram viver um inferno de vida. Se quisermos traduzir em conceito, entrar em análise é sair de uma moral dos costumes e instalar na ética do desejo.
Segundo, há que se conhecer a diferença entre Psicanálise e o mar de psicoterapias que são oferecidas. Se até para o profissional, nem sempre é clara, imagine para o leigo. O termo "Psicanálise" adquiriu certo valor de mercado e acaba sendo o cobertor genérico de corpos disciplinares muito diferentes, o mais das vezes, opostos. Em síntese, praticamente todas as psicoterapias seguem o modelo da ética médica: um se queixa, o outro trata; um não sabe, o outro sabe; um é paciente, o outro é atuante. Arrisquemos uma definição: no fundamento do que se chama Psicanálise está sempre - sim - sempre responsabilizar o sofredor em seu sofrimento. Não culpar, atenção, responsabilizar e de uma responsabilidade muito diferente da responsabilidade jurídica, que se baseia na consciência dos fatos. Seria até engraçado que a prática do inconsciente exigisse a responsabilidade consciente. A responsabilidade em Psicanálise, contrariamente à jurídica, é a responsabilidade frente ao acaso e à surpresa. Não dá para ninguém se safar de uma situação dizendo: - "Ah, só se foi o meu inconsciente", como se ele fosse 'um moleque irresponsável que não tem nada a ver comigo'. A Psicanálise se define por sua ética, como queria Lacan, e a ética da Psicanálise é o avesso da ética médica, por conseguinte, das psicoterapias. Isso não quer dizer que uma coisa seja melhor que a outra, mas que é fundamental reconhecer as diferenças para que haja uma colaboração efetiva entre os campos clínicos e não mútuo borrão, como soe acontecer...."


Artigo, na íntegra, publicado na Revista Psique - número 51

Jorge Forbes: é psicanalista e médico psiquiatra, em São Paulo.
É um dos principais introdutores do pensamento de Jacques Lacan no Brasil, de quem frequentou os seminários em Paris, de 1976 a 1981. Teve participação fundamental na criação da Escola Brasileira de Psicanálise, da qual foi o primeiro diretor-geral.
Preside o IPLA - Instituto da Psicanálise Lacaniana e o Projeto Análise


domingo, 5 de dezembro de 2010

"Desejo Real"

A problemática da verdade está presente na obra de Lacan desde o início, acentuando-se à medida que ele avança. Assim, é raro um texto em que ele não a aborde, de uma ou outra forma. Já em l936, Lacan relaciona o conceito de verdade à natureza da realidade enquanto realidade psíquica, ou seja: àquilo que é verdade para o sujeito. Assim, o conceito de verdade é relativo ao objeto de estudo, e no caso da psicanálise é relativo aos fatos do desejo. Isto quer dizer que o desejo é tão real para o sujeito quanto à realidade factual o é para a ciência positiva.

É, pois, nesse nível da realidade psíquica que se deve situar a questão da verdade, tanto para a psicologia, quanto para a psicanálise. A noção de verdade volta com toda força no texto de 1946 sobre a causalidade psíquica, onde é feita uma crítica vigorosa do organo-dinamismo. Opera-se uma mudança capital: se quer fundar uma psicologia científica, as questões devem ser postas em termos de verdade, e não de realidade. Aí a verdade é posta como condicionando, na sua essência, o fenômeno da loucura, que tem como equivalente a verdade do psiquismo.  Isto já mostra, de alguma forma, o caminho que Lacan tomará: a adoção de um conceito de verdade avesso à conaturalidade com o real. É segundo esta perspectiva que vamos encontrar a análise do “caso Dora”, pontuando, através de uma série de "renversements dialectiques", a descoberta da verdade do sujeito.

A questão é retomada na análise do “Homem dos ratos”, cuja articulação com o Poesia e Verdade de Goethe serve de ponto de apoio para colocar de forma clara a questão da ficção e da verdade. Este texto antecipa de alguma forma uma tese que será expressa no “Discurso de Roma”, onde a dialética da palavra plena e da palavra vazia recoloca a questão da verdade em termos que fogem ao binômio verdadeiro-falso. Aí fica claro: a psicanálise busca a verdade, e não a realidade. E a verdade nasce na palavra A partir de então a verdade vai aparecer em quase todos os textos de Lacan, como algo intrínseco à natureza e ao próprio destino da psicanálise e sua prática. Neste sentido, o Seminário I é o início de uma seqüência segundo a qual a questão da verdade vai se repetir em diferentes momentos da obra como algo crucial.

Afinal, se a descoberta de Freud põe em questão a própria verdade), o de que se trata é de constituir um saber acerca da verdade o sujeito desenvolvendo aí a sua verdade pois a dialética da verdade é o que está no coração da descoberta analítica. Por isso, em 1977 Lacan dirá que ao longo "desses 25 anos"se esforçou para dizer a verdade acerca do saber que funda a psicanálise. A fim de evitar a "reverência idólatra pelas palavras" e de vigiar pelo seu uso, convém se perguntar de que verdade Lacan fala, antes que se dê livre curso a mais uma "palavra ídolo” (Heidegger). Quando Lacan usa a palavra "verdade" o que quer ele dizer? Qual o seu conceito de verdade? Será o mesmo de adaequatio rei et intellectus, tão antigo quanto à própria metafísica? Convém saber do que se fala, pois, a dizer do próprio Lacan, há um logro fundamental na linguagem humana, e, se por um lado a palavra introduz no real a dimensão de verdade, por outro ela é fundamentalmente enganadora.


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Breve discurso sobre a verdade em Lacan
Luís F.G. de Andrade

Limites da sublimação na criação literária
Ana Cecília Carvalho

sábado, 27 de novembro de 2010

"Lugar do Encontro"

  
A afirmação radical de Merleau-Ponty de que “nosso corpo não está no espaço: ele é o espaço”.E, para exemplificar, o filósofo descreve diversas experiências, entre elas, a experiências de Stratton sobre a inversão das imagens em um dado campo perceptivo, através do uso de óculos apropriados para inverter as imagens retinianas. Nessas experiências, apesar da inversão do campo, o sujeito continua identificando o mundo sem precisar se utilizar de conceitos porque vive nele, ele não lhe é estranho; ele aí coloca o seu centro de gravidade. No começo da experiência o campo visual parece distorcido e irreal, porque o sujeito não vive nele e, portanto, o desconhece. Aos poucos, porém, a ele vai se acostumando ao estabelecer relações orgânicas. Essa possessão do mundo pelo sujeito, através do seu corpo, é que dá origem ao espaço.  Merleau-Ponty : “que o fato de que nós ficamos em pé não pela mecânica do esqueleto ou mesmo pela regulação nervosa do tônus, mas porque estamos engajados num mundo, se este engajamento se desfaz, o corpo afunda e se transforma em objeto”. Outro exemplo característico pode ser pinçado na literatura infantil. As histórias de Lewis Carrol, Alice no país da maravilhas e Alice no país dos espelhos. Quando Alice caiu no buraco da árvore, o mundo lhe pareceu às avessas e ela pensou enlouquecer: “Oh, céus, a que latitude e longitude estarei?” Mas, com a continuidade do seu sonho, ela se habituou ao mecanismo de crescer e decrescer, subir e descer, engordar e emagrecer, andar de cabeça para baixo, tomar chá com o chapeleiro louco, conversar com uma lagarta e ver aparecer e desaparecer um gato muitíssimo esquisito. Dessa maneira, ela consegue estruturar a sua realidade conforme o referencial dado. Observemos esta passagem do relato: “Nisso, ela viu, debaixo da mesa, uma caixinha de vidro. Abriu-a e encontrou um bolinho com confeitos prateados formando a palavra COMA-ME. _ Bem, vou comê-lo _ disse Alice. _ Se eu crescer bastante, apanho a chave. Se, ao contrário, encolher mais, passo debaixo da porta. De todo jeito, entrarei naquele maravilhoso jardim. Nada mais importa!”. As colocações de Merleau-Ponty sinalizam para o fato de que a realidade “em si” é inapreensível como tão bem demonstrou Kant com o conceito de noumeno (do grego noûs, espírito), nós só podemos apreender o fenômeno tal como ele aparece para as nossas sensações, daí que o real seja sempre “para-si”, constituído juntamente com a corporeidade: “Todo vivido é vivido sobre o fundo do mundo”. Por isso, podemos perceber um sem número de realidades correspondentes a diversos modos de estruturação do espaço e de sua fixação ao mundo; esses espaços são antropológicos porque são abertos pelo homem: a realidade do adulto que se considera “civilizado”, a do primitivo, a infantil, a do doente mental, a da arte, a do matemático, a do místico, e por aí vai. Além do mais, cada um tem seu mundo privado, ao lado dos demais: “O mundo, diz Maria Seabra, “é o lugar do encontro, onde nós reencontramos os instrumentos que construíram nosso próprio mundo”. A única certeza infalível é a da própria vivência. Portanto, ela é sempre uma experiência emocional, vale dizer, na encruzilhada da intensidade e do embate das forças.

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Corpo e Potência no Pensamento de Merleau Ponty
Maria Helena Lisboa da Cunha
                                                Visão e Corporeidade em Merleau Ponty
Bernadete Franco Grilo Machado