segunda-feira, 12 de setembro de 2011

SEM COMPAIXÃO



Jorge Forbes
Algo melhor a propor?  Solidariedade – com articulação das solidões
Compaixão é vício ou virtude? Essa pergunta parece uma provocação. Quem ousaria dizer que é um vício, quando a boa moral a tem entre as mais enaltecidas virtudes?
 E, no entanto, esse debate não é novo: Rousseau defende a compaixão ardentemente, Nietzsche a declara vício que atrasa a humanidade: “O sofrimento torna-se contagioso através da compaixão”.


Não entremos no debate filosófico, vamos às ruas, de onde esse debate surge, e façamos uma experiência afetiva. Ao sermos apresentados a uma pessoa, conversemos com ela por uns 15 minutos e, ao nos despedir, digamos da simpatia que nos provocou conhecê-la Depois, façamos o mesmo com outra pessoa, semelhante à primeira, só que no momento da despedida, no lugar de confessarmos nossa simpatia, digamos que ela nos causou forte compaixão. Em qual dos casos a pessoa reagirá melhor? É evidente que será no primeiro, o da simpatia. Dizer para alguém que lhe temos muita compaixão é quase ofensivo. “Simpatia” vem do grego; “compaixão”, do latim. Será que no momento da latinização do primeiro termo, ele foi filtrado pela ideologia judaico-cristã, passando a palavra “compaixão” a carregar o aspecto de piedade que “simpatia” não tem? É uma hipótese bem razoável. Na simpatia, uma pessoa se confraterniza diretamente com a outra; na compaixão, ela se confraterniza em um lugar terceiro, através de um elemento em comum, seja a natureza humana, seja a filiação religiosa, como os irmãos em Cristo ou em Abraão. Na simpatia, sente-se com o outro, não exatamente a mesma coisa; enquanto na compaixão, não se sente, mas entende-se o sentimento do outro, normalmente um sofrimento, porque isso também poderia lhe ocorrer. E, se ocorreu com o outro, e não com o compadecido, é porque o outro foi “escolhido”, daí a piedade.
Esse aspecto se evidencia quando uma pessoa adoece gravemente em uma família. O doente fica mal, porém acariciado; os outros da família ficam bem (embora discretamente envergonhados). Médicos e demais profissionais de saúde tendem ao mesmo tipo de comportamento piedoso. É conhecido o caricato exemplo de uma enfermagem que se acha carinhosa por chamar o paciente idoso de “vozinho”, falado em tom melancólico-doce, com o máximo de diminutivos possíveis: “O vozinho quer agora tomar a sopinha bem quentinha?” Algo melhor a propor? Sim, solidariedade. Solidariedade no sentido de articulação das solidões. Podemos estar com alguém para dividir um prazer, um interesse, ou porque esse alguém nos toca, sem maior explicação; é o sentimento básico da amizade, da simpatia, fundamental para os tempos em que vivemos, de individualidades desgarradas. Não é necessário ter pena – sempre discricionária – de alguém para se estar junto. Menos compaixão, mais simpatia solidária, faz a vida melhorar a pena.
Artigo publicado na revista Psique nº 8 -Novembro 2007


terça-feira, 16 de agosto de 2011

..ALÉM DAS AFINIDADES


DE QUEM O PAI GOSTA MAIS?
Jorge Forbes agosto-2011

Pais ficam aflitíssimos ao afirmarem: -“Gosto dos meus filhos igualzinho”, por serem imediatamente contestados. – “É mentira!”, brada o primeiro, “É mentira!”, repete o segundo, o terceiro e quantos mais filhos houver.  “É mentira”, fala também a voz da consciência na cabeça dos pais: eles sabem que é mentira, mas como confessá-la sem imediatamente não se verem tachados pelos filhos, e por si próprios, de injustos, interesseiros, parciais, e mais e mais? Por suposto que é mentira e qual é o grande problema em afirmá-lo? A questão é que se condensa e se confunde, no termo "gostar", afinidade e amor. O impasse pode ser facilmente resolvido se os pais souberem que o amor pelos filhos é igual, mas as afinidades com um ou com outro, são obviamente diferentes, inclusive variando no tempo e na circunstância. O amor de um pai – genericamente falando, pai ou mãe – por um filho, é um amor que faz com que ele possa morrer por um filho. Esse é um tema destacado pelo filósofo francês, Luc Ferry, em seu último livro: A revolução do amor. Quando se morre por alguém, evidentemente não há graduação; não se pode morrer mais por um filho e menos por outro. Ninguém morre pela metade e `morrer´, aqui, não é utilizado metaforicamente. Hoje em dia não morremos mais pelos três grandes ícones do mundo moderno, anterior ao nosso, pós-moderno, a saber: a pátria, a revolução, a religião; quando se trata do mundo ocidental, é claro. Essas atitudes não fazem mais nenhum sentido, embora já tenha feito e muito. Mas, morrer por um filho, sim; nenhum outro sentido lhe é hoje superior.

Agora, já a afinidade é outra coisa. A afinidade é uma parte do amor, aquela que diz respeito ao compartir os mesmos fins. Exemplo: torcer por um time de futebol; gostar de um tipo de conversa e de leitura; preferir uma casa de praia, ou de montanha; escolher uma roupa, mais discreta ou mais espalhafatosa; compartilhar o gosto por cinema; adorar ficar em casa, ou sair muito; e por aí vai. A afinidade é múltipla, e como escrevi acima, varia com o tempo. Ninguém comparte todas as afinidades com a mesma pessoa, é quase impossível, até porque a própria pessoa muda seus gostos pelos mais variados motivos: pelo dia, humor, cansaço, enfim, pelo chamado “estado de espírito”. A consequência é que pode parecer que hoje o pai prefira o filho mais velho e que amanhã o caçula se veja o escolhido. Diz alguém que o sortudo é o pai, pois esse – pai ou mãe – só existindo um, ao filho não é dado preferir uma mãe a uma outra mãe. Por certo ele preferirá algumas vezes a mãe, noutras o pai. O mais interessante do amor de um pai por um filho é que ele não é explicável, logo, também por isso não cabe dizer que ele é maior por este ou aquele filho, uma vez que não sendo explicável não pode ser mensurável.  Este ponto de inexplicável, de não dito no amor de pais e filhos é uma âncora fundamental para a vida de um filho. Ele junta nessa âncora duas qualidades importantes: apoio e flexibilidade. Apoio, pois um filho conta com a certeza desse amor, ao enfrentar as incertezas da vida, e flexibilidade, pois exatamente por não ter explicação, esse amor permite muita variação de escolhas pelo filho: ele não será menos amado se fizer isto ou aquilo, exatamente porque o amor está sempre além das afinidades. Aqui vale lembrar que ele está mais além inclusive das afinidades biológicas. Temos um fato recente que ilustra isso, dado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Ocorre que FHC reconheceu um filho gerado fora de seu casamento, há um bom tempo. Razões que ultrapassam o nosso âmbito o levaram a fazer um teste de DNA, de prova de paternidade. Esse teste deu negativo, negando-lhe a paternidade biológica. Incontinenti, o ex-presidente disse que sua paternidade não dependia do componente de DNA e que em nada aquele teste mudaria sua relação com o seu filho.
As afinidades são muitas, diversas, móveis; o amor de um pai é um só.

sábado, 13 de agosto de 2011

"O instante de ver...



O psicanalista baiano Aurélio de Souza diz que pessoas que alegam não suportar o sofrimento muitas vezes se recusam a eliminá-lo, e que a busca pela cara metade é erro que pode levar a uma luta mortal ...



"QUEM ANALISA É O PRÓPRIO ANALISANDO, AQUELE QUE PROCURA A ANÁLISE. EU APENAS SIRVO COMO UM GUIA PARA AS DESCOBERTAS QUE O ANALISANDO FAZ"

Psique - E, no entanto, os calmantes são absolutamente populares em pacientes acometidos de depressão, por exemplo, que é um mal apontado como em franca expansão entre a sociedade moderna...

Souza - A depressão tem um componente somático. Quando trabalhamos com um paciente deprimido, temos que ir além de suas possibilidades orgânicas. Temos que desvendar seu comportamento à medida que ele vai tendo um problema no pensamento, e o medicamento diminui a mobilidade do pensamento. Isso interfere no que esse paciente poderia fazer e não faz.

Psique - E isso, para o senhor, é um prejuízo sério...

Souza - Veja: Lacan nos ensinou que há o instante de ver, o tempo de compreender e o momento de concluir. A Psicanálise, como eu a entendo, diz que você conclui no seu pensamento, você elabora, e, finalmente, você é capaz de perceber à sua volta. Freud nos relata o caso clínico de um paciente, obsessivo compulsivo, que ficou famoso como "O homem dos Ratos". Trata-se do episódio de um homem que encontra uma pedra na estrada. Ele imagina que a carroça que transporta sua amada vá colidir com a pedra, e que nesse acidente a mulher venha a morrer. Então retira a pedra do caminho. Depois ele caminha mais um pouco, e conclui que aquilo é um absurdo; volta, e recoloca a pedra no meio da estrada. Essa ideia da possibilidade da morte ilustra, tãosomente, um desejo inconsciente que ele tem, de que a amada morra.

Psique - E o senhor também gosta de dizer que, ao receber o paciente, não faz anotações, não abre uma ficha para ter o histórico dele, algo comum em qualquer atendimento da área da Saúde...

Souza - É verdade. Não faço ficha. Meu paciente se constrói diante de mim a cada visita que me faz. O passado dele não me importa tanto quanto aquilo em que ele se afigura para mim hoje, no momento em que vou analisá-lo. Aliás, posso dizer aqui o que sempre coloco para os meus analisandos: quem analisa é o próprio analisando, aquele que procura a análise. Eu apenas sirvo como um facilitador, ou, se o senhor preferir, como um guia para as descobertas que o analisando faz. É nesse momento em que aparecem os pensamentos dos quais ele não tem consciência. Vou lhe dar um exemplo do cotidiano: nada mais interessante do que o momento em que nos despedimos de uma pessoa querida.

 (texto - na íntegra)

quinta-feira, 14 de julho de 2011

A chegada do camaleão

  Jorge Forbes

Estamos na época das grandes feiras internacionais de livros: Bolonha, Londres, Nova Iorque. Isso proporciona um quadro das tendências literárias daquilo que vai se publicar, do que “o povo quer saber”, como se fala em política populista. Um dos principais ecos que se faz ouvir é Camaleão. Parece que vão chover capas de Camaleão. Uma grande publisher, frequentadora dos melhores agentes da área, me explicou a metáfora. Não é que haja uma repentina devoção pela besta pré-histórica, mas pelo que ela sempre representou: alguém que se esconde ao parecer igual ao meio onde se encontra. Como diria o Gilberto Gil: - “Está na cara, você não vê”. O foco não é bem o se esconder – essa é a velha leitura – mas é a incrível capacidade de adaptação à paisagem desses animais agora invejados.Se comportar como um Camaleão, até pouco tempo atrás, era muito mal visto. Queria dizer de uma pessoa que não tinha personalidade, uma Maria-vai-com-as-outras, que não sabia o que queria e que, por isso, mendigava pequenos afagos se fazendo o mais igual possível ao que dela era esperado. Esse tipo de atitude recebia até xingamento extraído da classificação biológica: - “Você se comporta como um réptil!”.

O que era um vício vai virar virtude? Como entender?   Ocorre que o mundo mudou. Na época em que valorizávamos o ser sempre igual, independente da situação, a sociedade era uma sociedade vertical, ou seja, com padrões ideais superiores que geravam uma organização social em pirâmide. Ficou famosa essa padronização, por exemplo, na proposta de Abraham Maslow, em um velho artigo de 1943 A Theory of Human Motivation, retomada em seu livro de 1954, Motivation and Personality. Vem dali o que se habituou chamar a “pirâmide de Maslow”. Modelo que curiosamente ainda faz sucesso nas discussões empresariais, desprezando o fato que o mundo de hoje é muito distante daquele de setenta, sessenta anos atrás, que uma revolução paradigmática ocorreu e que de pirâmides só sobraram as do Egito, as do México e a do Louvre. Mas essa é de vidro, não sei se deveria estar aqui. Pois bem, quando o mundo é padronizado, hierárquico, faz sentido a rigidez comportamental, pois é a forma de se estar o mais próximo do topo da pirâmide escolhida para subir. No entanto, quando não existem mais pirâmides, quando a sociedade se faz em redes múltiplas e mutantes, o rígido não chega nem no primeiro degrau, quebra antes. Ser então Camaleão é estar pronto a todas as circunstâncias. Nada a ver com a recém criticada moleza de índole, mas com a inteligência de saber a cada instante a melhor maneira de passar no mundo a sua singularidade. Não se deve confundir singularidade com particularidade, tantas vezes usadas como sinônimos.

Essa, a particularidade, como indica o nome, é parte de um todo; a singularidade, por sua vez, “ex-iste”, como escrevia Lacan, “fica fora”, e por isso exige um trabalho criativo de inscrição no mundo. Criativo e responsável, pois por ser inusitada, sem lugar anterior, o primeiro responsável por ela tem que ser você. Os camaleões não terão uma vida fácil. A começar do fato que deverão saber desde o início que a vida não tem piloto automático e que correções de rumo são necessárias a cada momento. Segundo, as bússolas do mundo globalizado não chegam nem aos pés às do mundo anterior, que atingiram o seu ápice nos atuais GPS. Ainda está por se criar o GPS da pós-modernidade, nela, ainda estamos na pré-história, mais uma boa razão da comparação com os répteis. O homem pronto a todas as circunstâncias está muito longe da fotografia daquele senhor empinado, de relógio de bolso, bigode, vaselina no cabelo, e um monte de filhos sentados a seus pés. E também da senhorinha sua mulher, gorda, cheia de roupa rodada bege, leque na mão, e olhar perdido de bondade angelical. A globalização balançou todas essas certezas. O Camaleão vai ter que se guiar por algo pouco claro aos outros, e também a si mesmo, que os psicanalistas chamam de seu desejo, que se articula com o seu gozo, mas aí complicaríamos muito. Basta dizer que estamos na época da Ética do Desejo e que esta não se adéqua a qualquer moral pré-moldada. Temos muito a festejar um tempo que retomou em sua mãos o futuro, fazendo dele não mais uma projeção do presente, mas uma invenção. E que venham os livros e os Camaleões!

Artigo publicado na revista Psique nº 66 - Junho 2011

domingo, 3 de julho de 2011

O divã além da porta

"Vocês ponham o divã virado para a porta.
Assim, se o paciente quiser sair sem olhar para vocês, ele simplesmente se levanta, abre a porta e vai embora"

 Jorge Forbes

Eu estava no começo de meus estudos de psicanálise, mais ou menos na metade do meu curso de medicina. Quem me ensinava a posição correta no divã da sala de análise era um consagrado psicanalista da sociedade local, terno cinza, camisa branca, cara sisuda de conteúdo, com riso comedido. E ele não ficava aí: a esta pérola da posição do móvel se somavam outros ordenamentos práticos para o correto “setting terapêutico”, como assim era chamado. Preferencialmente não se devia estender a mão ao paciente, o menor contato físico poderia ser desencadeador de fantasias ancestrais perigosíssimas ao tratamento. Por razão semelhante, nada de fotografias na sua sala. Imagine um psicanalista que mostrasse sua família ou seus amigos, quão perturbador poderia ser.  Melhor mesmo é que nem livros tivesse, para não revelar seu gosto literário, ou sua filiação científica. Vestir-se deveria ser sempre o mais discreto possível: homens de gravata, mulheres de saia abaixo do joelho, sempre de cores pálidas. Não atender, ah, isso era fundamental, não atender pessoas da mesma família, para que a transferência não se misturasse nas intricadas redes afetivo-familiares. Aliás, era melhor também não atender ninguém que morasse nas cercanias do consultório ou da casa do analista, pois já imaginou como seria horroroso, disruptivo mesmo, um paciente ver seu analista de bermudas em uma manhã de domingo comprando um jornal na banca da esquina?

Se para ser analista fosse necessário cumprir estas normas que para mim, apesar da pouca idade, me pareciam compor um forte bestialógico, eu ia ter que escolher outra coisa para fazer na vida. Minha crítica não recaía só sobre o cumprimento bobo dessa cartilha, mas especialmente sobre a ideologia que a sustentava. É fácil perceber que tudo está ali pensado para não “perturbar” o paciente. Ora, ora, uma análise foi feita para fazer dormir, ou para acordar? Assim descrita, ela serviria para não incomodar o paciente em seu sintoma, em seu sono irresponsável e inconsciente. Continuando, percebe-se que havia uma tentativa de transformar o analista, sua pessoa, seu corpo, em algo diáfano, invisível, o mais perto possível da famosa “tela em branco” sobre a qual o paciente projetaria suas angústias, na certeza de não vê-las misturadas com a pessoa que o atendia. Triste e capenga visão do que seja a intimidade de uma pessoa: a lombada de seus livros? Suas fotos? Seus amigos? Sua roupa? Não, nada disso, esses traços podem ser indicações, alusões – e quantas vezes falsas! – mas não dizem do cerne de uma pessoa. Aliás, aí está um dos desafios da psicanálise, o de levar a perceber que todas essas características são apoios provisórios da identidade que um analisando deve ir questionando, um a um, em seu trabalho analítico, desembaraçando-se do peso de suas identificações, para poder alcançar o mais íntimo do seu ser, algo de uma estranheza familiar, como diria Freud.

Já estava pronto para fazer outra coisa na vida, como escrevi - pensei em ser gastroenterologista, pois percebia que a maioria das queixas desse sistema se relacionava mais aos sapos comidos, que a pratos mal preparados - quando me deparei na Livraria Francesa da Rua Barão de Itapetininga, em São Paulo, com um livro de um tal de Lacan, que alguém me havia assoprado muito levemente, só dizendo que tinha ouvido falar que ele vinha afirmando coisas novas na psicanálise, lá pela Paris. Abri seu livro com o título provocador de “Écrits”, como se abre livros ao léu nas estantes das livrarias e me deparei com uma frase impactante, no capítulo intitulado “A direção do Tratamento”: “O analista faria melhor situando-se em sua falta-a-ser do que em seu ser”. Claro que naquele momento não entendi muita coisa desse quase aforismo, mas entendi o suficiente para me convencer que havia uma outra psicanálise possível, diferente daquela cheia de rituais de isolamento obsessivos, e que eu poderia continuar em meu desejo de ser psicanalista. Apostei: literalmente embarquei e fui conhecer de perto esse verdadeiro acontecimento Lacan. Não me arrependi, continuo a viagem na certeza sempre mais clara que uma intimidade não se apreende nem nos detalhes de decoração, nem nas vestimentas, mas na ética de se responsabilizar, ou seja, de responder por esse desejo que sempre nos interroga. E que viva a Psicanálise, além de qualquer standard.

artigo publicado na revista Psique nº 64, abril 2011

terça-feira, 14 de junho de 2011

Não perca tempo

Não perca tempo
Maria Rita Kehl*

Jean Cocteau em Ópio: “Viver é uma queda horizontal” (...) Tudo o que a gente faz na vida, até o amor, a gente faz no trem expresso que caminha para a morte”. Saber disso o tempo todo seria insuportável. Precisamos ignorar periodicamente a morte para conseguirmos viver. O capitalismo coloca um arsenal de mercadorias à nossa disposição e retira grande parte de seus lucros desse truque: iludir civilizações inteiras sobre a idéia do fim. A tecnologia nos promete a realização imediata de todos os desejos: nós quase não acreditamos na morte como destino da carne. A tecnologia nos promete o horror da vida eterna já, e aqui mesmo. Vivemos a todo o vapor. Não a velocidade da “queda horizontal” (inevitável!) a que se refere Cocteau. Vivemos na velocidade de uma fuga. As duas funções básicas do “milagre” tecnológico são ilusórias. Encurtar necessário para as operações e tarefas da vida: a isso chamamos conforto.  Adiar a possibilidade da morte, e afastar seu espetáculo trágico do nosso convívio: proporcionar-nos um cotidiano alienado de seu próprio fim: a isso chamamos segurança.

Claro que o preço que se paga pelos truques é o trabalho. Em troca da ilusão de que o tempo é eterno, é algo que se espiche e se acumule segundo a mesma lógica da acumulação do capital, abrimos mão do tempo da experiência, do tempo “ocioso” e às vezes angustiante da subjetividade, da poesia. O tempo presente passa a só ter valor em função de um futuro idealizado, garantido, “eterno”: o que nos faz “correr para o futuro” ajustados ao tempo da produção.  O tempo do neurótico nunca é o presente. O neurótico não pode gozar com sua experiência.(...) (...) A psicanálise, a princípio, parece um desmancha-prazeres. Acorda o sujeito de seu sonho de zumbi (ou não: quem procura um analista já foi acordado, de uma maneira ou de outra, por algum sofrimento que não pode evitar) para lhe acenar com limites, morte, castração, perdas. Na sociedade do consumo e do narcisismo, esta parece uma prática para otários. Mas esta prática aponta para a rebeldia. Reinserido na sua história e confrontado com a morte, o analisado recupera a liberdade para viver o presente. Os fetiches da tecnologia  são proteções contra o medo da castração

A proposta da psicanálise é outra. Que se enfrente este medo; livre da proteção dos fetiches a vida se abre para a experiência. Por exemplo, para a experiência estética. Por exemplo, para o amor.
   
 Maria Rita Kehl é psicanalista é autora de diversos livros: entre eles “Deslocamentos do feminino”,“O ressentimento”,“Sobre ética e psicanálise .Maria Rita Kehl escreveu o texto em agosto de 1994
 na  Folha de São Paulo.
O texto completo procurar em www.uol.com.br

sexta-feira, 20 de maio de 2011

"O mundo é meu lugar"

O mundo é meu lugar

Jorge Forbes

O prazer tem algo de cafona:
de comprar jornal de domingo de
chinelo de couro;
de andar de camiseta de
umbigo de fora;
de declarar amor dizendo :
eu te escolhi, tu me escolheu ?;
de pôr cadeira na calçada
para papear, para ver o mundo
que passa, para calçadar
o sonho, que a rua
é minha praça,
que o mundo é
meu lugar.
Cafonas do mundo
me aceitem,
tô cansado de impostar
.